Mário Soares, o João, o César, o Campos, a Osita, o Américo e eu
Todas as palavras que contavam já foram proclamadas. Nenhuma das que possa aqui escrever ou dizer valerão o que quer que seja, neste mar de justas homenagens, neste imenso sentimento de perda e saudade. Mas seria cobardia se não me permitisse a outorga de um testemunho.
Havia qualquer coisa de magnético em Mário Soares, mais do que havia em Cunhal ou em Sá Carneiro que também o eram. Havia sempre autoridade e respeito, mesmo quando lhe permitíamos a cólera. Um Homem diferente.
Nestes dias, atravessados pela morte de Guilherme Pinto que me deixou de rastos, Mário Soares é todo um país, mais, é todo um tempo, o melhor tempo que a Europa já passou, de paz e prosperidade, de afirmação de valores e de construção da cidadania.
Nesta coluna do Acção Socialista só havia, hoje, lugar para ele, só há lugar para ele. E nesta minha homenagem quero evocar e fazer-me acompanhar de camaradas e amigos que representam o completo eixo central da sua vida.
O João, seu filho, disse-nos tudo na sua mensagem de despedida. A coragem, a integridade, o exemplo, a visão, a “tribo”. Há aqui uma profunda relação de pertença, uma marca identitária que vem de João Soares pai, até Mário Soares neto, há uma força que não se verga perante o dia menos bom, há uma história que se constrói e que fica gravada na pedra do tempo. Como nos fizeste estar em cada uma das tuas palavras, João, sentindo a grades da prisão, a saudade do exílio, a autoridade superior da ausência de lágrimas perante o inimigo…
O César, presidente do nosso Partido, foi sentido e institucional, foi imensamente digno perante um parlamento que o queria acima de todos, assente numa visão suprema da responsabilidade que os socialistas têm no Portugal democrático. Sei bem como César gostaria de ter partilhado o seu Mário Soares, como teria sido para ele tão reconfortante dar conta da sua caminhada que foi sempre co-guiada pelo farol de Soares. Mas o presidente do nosso Partido assumiu, de forma exemplar o que é de todos nós, a mensagem de uma presença eterna que é o sentir imenso do punho sobre o vermelho.
O Campos, é o fundador que mais tempo o acompanhou. Foi tudo para Soares, como que assumindo uma espécie de procurador permanente. Não ouvi, em lado nenhum, qualquer depoimento de Campos. Não sei se por vontade pessoal ou se por desconhecimento da nossa história por parte dos mediadores que nos dão carateres, sons e imagens. Mas o Campos era ontem o símbolo máximo do nascimento deste nosso partido, deste nosso Portugal que honramos e defendemos. Imagino as recordações de Soares e Campos, no velho Jaguar de Sérgio Sousa Pinto, naqueles anos de Bruxelas e Estrasburgo que vieram a ser o Vinho do Porto das vidas…
A Osita, que encontrei na entrada dos Jerónimos, esteve, nestes dias, onde sempre se colocou – na discrição. Se há pessoa que tem uma história de vida que se confunde com os últimos 40 anos da História de Portugal é esta nossa Osita. Sempre no momento certo, sempre conhecedora do elemento que faltava, sempre presente/ausente com uma sabedoria que Soares não dispensava. A Osita foi, nos últimos dias, a pessoa que escolhi, em pensamento, para representar as centenas de portugueses que trabalharam de perto com Soares. Só ela esteve tantos anos do seu lado, tantas horas de dedicação e de entrega, só ela sabe quantos amores e desamores políticos se atravessaram na vida de Soares.
Não vi o Américo senão na cerimónia evocativa da Assembleia da República. Para mim, que me cruzei em vários tempos com os tempos de Mário Soares, o Américo é a referência dos muitos que correram o país, que levaram Soares aos mais ínfimos territórios. O Américo é a abnegação, a disponibilidade, a quase paixão pelo guia. O Américo é, como que se viu no Largo do Rato, o partido feito por Soares, a perseverança, a sabedoria prática e o caminho percecionado dos socialistas de Soares. O Américo é também tudo o que nunca se saberá, porque os Homens grandes são feitos de pequenos e grandes momentos desconhecidos, como Willy Brandt ou François Mitterrand.
Permitam-me, agora, uma nota pessoal. Serei o mais insignificante de todos os que são referidos neste curto mas profundamente sentido texto.
Em 1975 Soares pareceu-me tão alto que quase se tinha transformado em figura divina; em 1979, Soares foi o líder derrotado que acompanhei com poucos; em 1981, Soares foi o provocador que me impeliu a ser do ex-Secretariado e me pôs Ivone Carmona à perna; em 1986, Soares foi o criador da mais bela campanha em que participei; em 1993, Soares foi o Presidente que me irritou porque irritou Guterres; em 1999, Soares fez-me acreditar que a Europa precisava de homens como ele, como se prova hoje; a partir de 2005 Soares foi sempre um fio de prumo para as minhas opiniões não ortodoxas.
Em toda a minha vida só três pessoas me puxaram as orelhas verdadeiramente, em sentido literal. Meu pai, pelo que fiz e não fiz; a minha professora da primária, pelo muito desacato que ia fabricando; e Mário Soares pelo que pensei e disse. Fiquei furioso.
Na campanha para o Congresso de 1981, Soares fez questão de falar com os militantes, os que lhe vieram a der uma vitória relevante. A minha opção não foi por aí. Erradamente, pelos olhares de hoje, impulsivamente e por ausência de leitura criteriosa dos tempos nos olhares da altura.
Numa sessão com militantes eu questionei, irritantemente, Mário Soares sobre duas opções que a sua moção “Novo Rumo” continha: a) a revisão constitucional para “civilizar” o regime e o modelo económico para Portugal. Soares não me deu qualquer resposta, ignorou. No final, depois de Montalvão Machado me ter chamado à atenção ruidosamente, Soares abeira-se de mim e diz-me puxando-me pela orelha esquerda – “o tempo te dará as respostas que querias”. Não lhe perdoei a condescendência até ser um pouco mais robusto e menos empertigado. Soares fez bem as duas coisas – uma pelo país, criando esta nossa democracia adulta; outra, colocando-me no meu lugar.
É por isso que estes dias são os dias em que me reencontro com o meu passado. É por isso que avanço para continuar a ajudar a engradecer o partido que ele criou, o país em que acreditou – livre, democrático e justo.