Inscrição de Genocídio Cultural nas Convenções internacionais, uma causa a abraçar
Assistimos atualmente a uma crise humanitária sem precedentes desde a II Guerra Mundial.
Ao mesmo tempo que morrem milhares de inocentes em guerras que julgaríamos impossíveis no século XXI, vemos mesquitas, igrejas, templos e património cultural edificado a serem sistemática e deliberadamente destruídos. Essas ofensivas e a destruição intencional dos testemunhos civilizacionais da Humanidade são um ataque à nossa tradição cultural, milenar, mediterrânica, pan-europeia, berço da cultura Ocidental e berço das grandes as religiões do mundo.
A cultura tem estado na linha da frente da Guerra, quando, pelo contrário, devia estar na linha da frente da Paz.
Depois do horror com que assistimos à deliberada destruição a dinamite dos Budas de Bamiyan (erguidos no século VI) e Ai-Khanoum, a mítica cidade fundada no século IV A.C. por Alexandre, o Grande, a ordens do líder taliban Mohammad Omar que decretou a destruição das estátuas e túmulos não islâmicos por serem considerados ofensivos ao islão, nos anos recentes os radicais do DAESH e outros grupos similares tem vandalizado museus, bibliotecas e lugares milenares na Síria e no Iraque, no Mali, muitos deles classificados pela UNESCO como Património da Humanidade, todos eles marcos preciosos dos avanços da civilização e da humanidade. Todos eles obras de arte insubstituíveis, cujo valor imaterial supera qualquer valor material – incalculável – que se lhes pudesse atribuir.
Nimrod, antiga capital do império assírio, no norte do Iraque, cidade fundada no século III A.C., foi destruída barbaramente a martelos pneumáticos e escavadoras. Tal como os terroristas divulgam vídeos de decapitações, também divulgam vídeos com os fiéis a destruir propositadamente as esculturas pré-islâmicas do Museu da Civilização em Mossul a martelo, como os outrora famosos Lamassu, touros assírios com cabeça humana, esculpidos há 28 séculos atrás e destruídos em nome da extinção da memória.
Seguiu-se outro lugar mítico da antiga Mesopotâmia, Hatra, com mais de 2.000 anos, que tal como resistiu às legiões romanas, também enfrentou os explosivos do DAESH. Jorsabad, antiga cidade de Dur Sharrukin, capital assíria durante parte do reinado de Sargão II no século VII A.C. ficou arrasada.
A ocupação de Palmira, cidade-museu, está a resultar num desastre sem precedentes. Em Palmira desapareceram o Arco do Triunfo e os templos de Baal Shamin e Bel. O Hipogeu dos Três Irmãos sofreu danos de enorme gravidade.
Estas ações são “um crime de guerra, declarou a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). “Os autores deverão responder pelas suas ações”, afirmou em comunicado a diretora-geral da Unesco, Irina Bokova.
As pilhagens de sítios arqueológicos e o tráfico ilícito de objetos culturais são utilizados como “instrumento de guerra” para o financiamento de atividades terroristas.
A destruição de Património Cultural é uma questão de Direitos Humanos. Quando a herança cultural é destruída, resultam importantes consequências num vasto leque de aspetos no quadro dos Direitos Humanos consagrados no Direito Internacional, quer para a presente geração, quer para as gerações futuras.
Os ataques perpetrados pelo Daesh, os Talibãs Afegãs e outros grupos radicais contra Património Mundial da Humanidade e testemunhos milenares da herança cultural da humanidade, demonstraram que estes atos representam muito mais do que tragédias culturais, podendo ser considerados atos de limpeza cultural. O objetivo dos terroristas é utilizar a destruição de edifícios civis e religiosos e de sítios arqueológicos que pertencem ao património comum da humanidade como estratégia para desestabilizar as populações, destruir a sua identidade e apagar a memória cultural de uma civilização.
O corpo legislativo no quadro do Direito Internacional, nomeadamente o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, já oferece resposta jurídica e penal a estes crimes já qualificados como crimes de guerra pela diretora-geral da Unesco, Irina Bokova, e, face à jurisprudência do Tribunal Internacional Penal, como crimes contra a Humanidade.
Apesar da designação “genocídio cultural” não se encontrar estabelecida no corpo da Lei, na verdade, desde 1933 o jurista polaco Raphael Lemkin, criador do termo genocídio – junção do vocábulo grego genos (“raça” ou “etnia”) com o vocábulo latino cide (“matar”), propunha a inclusão do conceito.
O exilio forçado de representantes culturais, a proibição de utilização de língua própria, a destruição de livros, de obras religiosas e objetos históricos e artísticos, foram fundamentos para tentativas de instituição do conceito de “genocídio cultural “no quadro do Direito Internacional Penal, nomeadamente nos trabalhos preparatórios da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio em 1948, embora sem sucesso.
Face à escalada destas ações intencionais e premeditadas, é tempo de se dar o passo seguinte, e determinante, a consignação do conceito de Genocídio Cultural no quadro jurídico internacional. Portugal pode e deve contribuir na ONU, na EU e em todos os patamares de influencia para que, finalmente, este conceito integre a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio.