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Há um longo caminho ainda a fazer em matéria de igualdade de género

Há um longo caminho ainda a fazer em matéria de igualdade de género

Assinalando o seu terceiro aniversário, o Acção Socialista Digital convidou a jornalista Maria Elisa para conduzir uma entrevista ao Secretário-geral do PS e primeiro-ministro, António Costa, que foi realizada em direto, na passada sexta-feira, na sede nacional do PS.
Há um longo caminho ainda a fazer em matéria de igualdade de género

Uma excelente e estimulante conversa, da qual publicamos hoje a primeira parte, onde as questões das desigualdades de género ainda persistentes na sociedade portuguesa, do emprego e das qualificações, do ensino e da justiça, foram temas em destaque.

A desigualdade é um tema que tem estado muito presente. E começaríamos pela desigualdade de género, lembrando o dia de ontem [8 de março, Dia Internacional da Mulher], em que almoçou com as mulheres do seu Executivo. A propósito, o senhor só tem três ministras e são 17 Ministros.

Manifestamente são poucas e, claramente, há um desequilíbrio grande. Tem a ver com fatores diversos, desde logo de um caminho que tem de se ir fazendo para aumentar o número de mulheres ativamente a participar na vida política. Já se fez, nos últimos 20 anos, desde que António Guterres introduziu a lei da paridade, um grande caminho. Hoje, pela primeira vez, quer na Assembleia da República, quer nas câmaras, quer no Parlamento Europeu, há uma representação superior a 33% de mulheres.

Não na associação nacional de municípios, onde o senhor também poderia ter indicado mais representantes femininos…

Bom, isso são os autarcas que escolhem. Pela primeira vez, há esse aumento de representação. Agora, há um longo caminho a fazer. E é por isso que ontem aprovamos, alias, duas propostas de lei, que espero que sejam bem sucedidas. Uma sobre a igualdade de género nos cargos superiores da administração publica e outra sobre uma elevação do nível de paridade, de 33 para 40%, na representação politica, designadamente na Assembleia. Mas também com a alteração de duas regras muito importantes, para que não haja uma subversão prática desse princípio: que na colocação dos diferentes géneros na lista é sempre necessário nos primeiros lugares haver uma alternância; em segundo lugar, a substituição de um deputado tem que ser feita por um deputado do mesmo género.

Esta semana os números do Eurostat disseram-nos que as trabalhadoras portuguesas ganham, em média, 17 cêntimos e meio a menos por hora do que os homens. Outro estudo, do Fórum Económico Mundial, dizia-nos que, se as coisas avançarem ao ritmo a que tem avançado, só daqui a 83 anos temos uma igualdade de géneros. O que é que podemos fazer para acelerar a marcha das coisas? Mais do que essas medidas, que, como diz, são necessárias, mas não são suficientes.

A questão da igualdade salarial, juntamente com a violência domestica, são os dois maiores desafios que temos pela frente em matéria de igualdade de género. A questão da igualdade salarial é particularmente complexa, porque a lei proíbe a desigualdade – trabalho igual, salário igual. Aquilo que se verifica é que na prática não é assim. E curiosamente, não é assim quanto mais alta é a função profissional e mais qualificadas são as pessoas – é aí que se verifica uma maior desigualdade. 

Por isso, aquilo que introduzimos e que está numa proposta de lei na Assembleia da República, visa precisamente corrigir esses efeitos da desigualdade salarial, por duas formas. Primeiro, criando a obrigatoriedade de dar maior transparência as condições remuneratórias em cada empresa, e em segundo lugar na inversão do ónus da prova sobre as empresas para que tenham de provar que a razão pela qual as mulheres ganham menos é por uma razão justificada e não meramente de género.

Lembrou uma questão muito importante: a violência doméstica. Infelizmente, sabemos que a violência domestica está a começar sobretudo no namoro e, a esse propósito, o governo francês introduziu uma medida sobre a qual gostava de saber a sua opinião. Introduziram uma espécie de pequeno observatório em todos os estabelecimentos de ensino, que estará em prática em 2019, justamente para assinalar, não só as desigualdades de género como eventualmente até casos de violência. Uma vez que tudo começa na escola, não lhe parece que é uma medida interessante?

É uma medida seguramente interessante. E porventura o programa Escola Segura hoje tem que se virar menos para o problema da segurança da escola relativamente ao exterior, mas também mais para a segurança dentro da escola. Esses dados relativos á violência no namoro são de facto muito impressionantes, porque contrariam alias aquilo que intuitivamente todos julgaríamos, de que com a evolução da sociedade e a evolução cultural essa violência diminuiria e não estaria a aumentar.

Gostava de lhe falar também de um livro que me inspirou muito para esta entrevista, que assinalou os 10 anos do Observatório das Desigualdades e que tem o objetivo de desocultar as desigualdades persistentes na sociedade portuguesa, que às vezes não são muito visíveis. Olha-se para o desemprego, nesse livro, de forma diferente, somando aos números oficiais os desempregados desencorajados, as pessoas que já nem procuram emprego porque perderam a esperança de o encontrar, ou os subempregados. A qualidade do emprego tem-se ou não degradado nos últimos anos? Porque isso vem também levantar uma questão muito pertinente, que é a própria sustentabilidade da segurança social.

Nestes últimos dois anos, tivemos não só a criação de mais emprego como emprego de melhor qualidade. Se compararmos os números que saíram nesse relatório, que indicavam a soma de 17% entre desempregados, desencorajados e subempregados, com os mesmos dados de há 3 anos, há uma redução muito significativa de 20 e tal para 17%. A taxa de desemprego é a taxa de desemprego, esse outro dado de comparação é importante, sobre a qualidade do mercado de trabalho. 

Outro dado importante é que a maioria dos postos de trabalho que têm vindo a ser criados são contratos sem termo, o que significa menor precariedade; e contratos também a tempo inteiro, o que significa uma baixa taxa de part-times ou de situação de subemprego. Eu diria que a evolução do mercado de trabalho tem sido francamente positiva e isso tem tido um efeito direto na sustentabilidade da segurança social: uma das razões porque a segurança social tem tido saldos positivos nos últimos anos – este ano, pela primeira vez, o Orçamento do Estado não vai ter de fazer um reforço extraordinário das dotações da segurança social – tem a ver com o facto de com menos subsídio de desemprego a pagar e mais contribuições estarmos a ter uma segurança social mais sustentável para o futuro. E se dermos conta que as contribuições tem estado a crescer mais do que a criação de emprego, percebemos que também o nível salarial tem estado a aumentar.

Sabemos que as desigualdades perante o emprego são o reflexo da desigualdade das qualificações. A esse nível, penso que é importante atentarmos no problema do abandono escolar, que embora tenha diminuído continua acima da média europeia e em 2016 tornou a subir ligeiramente.

Tinha subido em 2016, mas no ano passado baixou para 12,6%. A meta que estava prevista e contratualizada com a União Europeia, no Portugal 2020, é chegarmos a 2020 com uma taxa de abandono que caia para os 10%. Mas essa é uma chaga que temos de combater muito ativamente, porque o abandono escolar precoce implica a reprodução das desigualdades para novas gerações. O combate ao abandono escolar precoce passa, obviamente, pela melhoria do rendimento das famílias, mas passa também por uma nova forma da escola motivar, interessar e trabalhar com os seus alunos. 

E é por isso que temos feito um investimento grande no ensino artístico, na valorização do ensino profissional e na eliminação dos fatores de desigualdade no ensino profissional relativamente ao ensino normal. Ainda este mês, vamos eliminar as condições de desigualdade que se colocam aos alunos do ensino profissional relativamente aos alunos do ensino corrente quando nos concursos para entrada na universidade. E a eliminação de fator de desigualdade é muito importante para que continuemos a alargar o número de estudantes com acesso ao ensino superior e para continuarmos a valorizar o ensino profissional como uma via absolutamente central. 

Este ano arrancámos com um projeto que acho que vai ser a chave do combate ao insucesso escolar, que tem a ver com a flexibilização curricular: a possibilidade de em cada escola, no uso da sua autonomia, a comunidade educativa e em particular os docentes, poderem desenvolver as estratégias mais adequadas para poderem flexibilizar os seus currículos, tendo em vista um ensino de maior motivação.

Outra medida que foi tomada pelo seu Governo foi acabar com alguns exames, do 4º e do 6º ano, por exemplo. Acha que isso ajuda, ou pelo contrário dá um sinal de facilitismo, que não é porventura o melhor para os estudantes?

Não tem nada a ver com o facilitismo e ajuda muito. Acabaram esses exames mas anteciparam-se as provas de aferição para o meio dos ciclos, no momento onde é possível e útil detetarmos quais são as crianças que estão com um atraso relativamente às outras, tornando possível e necessário desenvolver estratégias para poderem recuperar. Só sabermos que a pessoa não sabe no fim do ciclo, coloca simplesmente as pessoas na situação de chumbarem e ficarem retidas. Detetar as insuficiências mais cedo permite uma estratégia de recuperação que é necessário fazer, de forma a que possam concluir em boas condições aquele ciclo. O objetivo da escola não deve ser chumbar, deve ser transmitir conhecimento.

Mas é preparar, com certeza.

A melhor forma de preparar é detetar o mais cedo possível as insuficiências que cada criança tem para poder compensar essas insuficiências, seja com aulas de estudo acompanhado, seja com uma maior exigência, seja com novas estratégias pedagógicas para poder motivar a criança. Agora, o deixarmos chegar a criança ao fim do ciclo, chumbá-la simplesmente porque não aprendeu e ficar retida, não é caminho. O que é caminho é o mais rapidamente possível detetar as insuficiências e suprir essas insuficiências.

É sem dúvida uma abordagem. Mas acha que com essa abordagem Portugal vai conseguir melhores resultados internacionais do que já tinha? Porque nós estávamos muito bem colocados, no PISA e no TIMSS, tínhamos uma boa classificação em termos internacionais.

Iremos continuar a melhorar, seguramente. E iremos melhorar, sobretudo, havendo mais gente a participar nesse processo. Porque aquilo que tenho verificado é que quer com a valorização do ensino profissional, quer com a estratégia da flexibilização curricular, as crianças estão de facto mais motivadas, a desenvolverem outras formas de trabalho, outras capacidades, que vão ser, aliás, absolutamente decisivas para o futuro. Estamos a falar de uma geração que estamos a formar, não para exercer as atividades que nós hoje conhecemos, mas para um mundo que não somos sequer capazes de imaginar o que seja. 

Há dois dias, visitei no concelho de Gondomar, em Rio Tinto, uma experiência precisamente de flexibilidade curricular e onde na mesma sala se aprendia a biologia, a físico-química, o português e a filosofia, de uma forma integrada, com a consciência que os miúdos tinham de que de a biologia tem uma ligação direta com a físico-química, que as manipulações das biomoléculas colocam questões éticas que são da filosofia, e que simultaneamente têm de desenvolver a capacidade de comunicação, porque não basta ser um excelente cientista se não for também capaz de expressar corretamente os seus conhecimentos. E isso é muito impressionante. Depois, à tarde, vimos uma grande demonstração do ensino profissional do distrito de Viana do Castelo, com experiências absolutamente fantásticas do que hoje se faz nas escolas. Portanto, quando oiço falar de facilitismo, pergunto-me sempre se as pessoas têm ido às escolas ver o que hoje se faz nas escolas.

Não teremos essa possibilidade, muitas vezes.

Mas vale imenso a pena ir. Sabe qual é o maior problema de irmos? É que temos imensa pena de não poder voltar para a escola, porque são muito mais interessantes do que quando nós andávamos na escola.

Houve um relatório de que também se falou muito ultimamente, o relatório europeu para a Prevenção da Tortura, que encontrou em Portugal presos em condições chocantes, constatou muitos atos de violência nas esquadras policiais. Diz-se que a investigação a esses casos demora tanto tempo que pode dar um sentimento de impunidade às forças policiais, não lhe parece? Ficou chocado ou não com esse relatório, em primeiro lugar?

Eu já exerci funções de ministro da Administração Interna há 10 anos e de ministro da Justiça há bastantes mais, e o relatório que hoje temos felizmente é francamente melhor do que os relatórios que tínhamos nessa altura. O que significa que ao longo destes anos o país tem melhorado significativamente desse ponto de vista.

Mas está satisfeito?

Os estabelecimentos prisionais são espaços particularmente difíceis e onde as tensões são muitas vezes muito difíceis de gerir. O relatório refere-se, creio, a 2015 e 2016. Os casos das esquadras são cada vez mais episódicos e não é o padrão generalizado dos problemas que existem. Eu creio que a inspeção-geral da Administração Interna tem sido bastante exigente – tem sido sempre dirigido por um magistrado judicial, agora uma juíza desembargadora –, tem uma boa equipa e procura ir exercendo essa ação de fiscalização. Agora, claro que temos um grande desafio, relativo à melhoria da capacidade e da qualidade dos nossos estabelecimentos prisionais.

AGRADECIMENTO

Agradecemos à Maria Elisa ter aceitado o convite para conduzir esta entrevista, renovando a sua disponibilidade, tal como há três anos, por ocasião do primeiro número do AS Digital, então na companhia de Vicente Jorge Silva, voltando a presentear-nos com o seu talento e inexcedível profissionalismo.