Governo usou memorando para servir agenda ideológica
Esta é a principal conclusão dos investigadores e coordenadores do Fórum das Políticas Públicas, cujo trabalho de análise das várias edições do memorando e dos dez relatórios de avaliação da troica foi compilado no livro “Governar com a troica: Políticas públicas em tempos de austeridade”.
Para o politólogo Pedro Adão e Silva, o memorando foi uma espécie de alavanca que permitiu ao Executivo Passos/Portas implementar políticas que de outra forma não teria sido capaz porque encontraria pontos de veto políticos e sociais.
Adão e Silva referiu que membros do atual Governo já reconheceram que o memorando de entendimento foi um conjunto de coisas que o Executivo queria fazer e que “foi instrumental ter o memorando como reforço e constrangimento externo”.
Mas, segundo o politólogo, o memorando foi também uma “oportunidade para redistribuir poder nas várias áreas”, transferindo recursos públicos para o sector privado.
Assim, a avaliação dos impactos do programa de ajustamento feita pelo Fórum através de vários estudos sectoriais é “globalmente negativa”.
Foram identificados impactos negativos na economia, emprego, aumento das desigualdades e afastamento da trajetória de aproximação aos países desenvolvidos. O Governo começou por tentar aplicar a tese da “austeridade expansionista”, com a “convicção ideológica de que se fizesse um ajustamento rápido a economia ia crescer”, lembrou Maria de Lurdes Rodrigues, coordenadora do Fórum.
De uma assentada fizeram-se cortes de 10 mil milhões de euros – suspenderam-se os investimentos públicos, cortaram-se salários, pensões e subsídios de férias e de Natal. “Nada disto estava previsto no memorando”, vincou, acrescentando que esta “entrada de leão, a matar” demonstra já a “orientação ideológica” do Executivo.
O resultado, esse, disse Maria de Lurdes Rodrigues, “foi o contrário do que o Governo previra e vieram novos improvisos: mais cortes e aumento de impostos, sobretudo IVA e IRS”.
Na mesma linha crítica, João Cravinho disse que o memorando “foi concebido sobre ilusões e distorções”, identificando ainda um “enviesamento ideológico” no documento.
Houve um “desgaste profundo das ideias do contrato social”, declarou, alertando para o facto de este cenário da “direita mais à direita” ter diluído “o espaço e as condições de compromisso, que é naturalmente mais ao centro”.
Tal compromisso, defendeu, “será necessário para o futuro a curto prazo, numa altura em que se aproxima um novo ciclo político”. Porém, “os partidos afastaram-se mais. Houve um movimento o seu posicionamento ideológico e programático”, que ameaça ser “irreversível”, alertou Cravinho.
A este propósito, Maria de Lurdes Rodrigues considerou que “ainda é possível construir compromissos” e que a história das políticas públicas tem inúmeros exemplos, como o Serviço Nacional de Saúde, o sistema de educação, na ciência, nos fundos comunitários.
Mas têm de ser construídos “em torno de objetivos concretos” e não sob a forma de acordos de coligação, que são mais “abstratos”, clarificou.