home

Em tempo de Santos Populares, todos os santos ajudam

Em tempo de Santos Populares, todos os santos ajudam

A história já é bem conhecida. O que é menos discutido é a forma como foi conseguido este sucesso de manter uma criança em gestação dentro de uma mãe em coma cerebral, durante 106 dias, cerca de 15 semanas, através da colaboração de unidades hospitalares diferentes.

Opinião de:

Em tempo de Santos Populares, todos os santos ajudam

Sandra, a mãe, tinha um tumor nas suprarrenais desde 2006. O tumor provocava a geração desordenada de hormonas, provocando hipertensão. Aconteceu o acidente vascular cerebral, irremediável. A rede funcionou. O hospital de primeiro acesso, um hospital público de gestão privada, consciente da gravidade do acidente referiu, e bem, a doente para os cuidados intensivos neurocirúrgicos do estabelecimento central. Aqui, reconhecida a impossibilidade de salvar a mãe, mas sabendo a criança de boa saúde, foi decidido mantê-la em gestação, recorrendo ao conhecimento técnico de outro estabelecimento especializado. O que implicou uma cooperação constante. O serviço residente cuidava da vida da mãe. O serviço cooperante ajudava a alimentar o feto, a controlar os seus equilíbrios e a medir regularmente o seu crescimento. Durante as 15 semanas que a saga durou, os momentos de crise foram superados no serviço residente com devoção e carinho infinitos. Quando foi tempo de extrair a criança, no serviço residente a obstetra da unidade cooperante praticou a cesariana. A criança foi mostrada ao pessoal que a tinha mantido viva. Lágrimas de emoção soltaram-se de muitos. Estabilizado o recém-nascido Lourenço, é transportado para a unidade cooperante, onde passará algum tempo a ganhar peso até ser acolhido pela família.

A história correu mundo, pelo longo tempo de duração da mãe em morte cerebral, artificialmente mantida viva para acalentar a sua criança. Um feito conseguido por excelente cooperação entre serviços. Nem a criança nem a mãe “pertencem” às unidades hospitalares que as acolheram e que tudo decidiram, com a concordância da família e o desejo expresso da mãe em vida. Esta, sabendo-se gravemente doente, preferiu gerar a criança em vez de ser de novo operada e tratada ao tumor, o que talvez lhe prolongasse a sua vida, mas tornaria impossível a da criança. Consultados os padrões e opiniões da ética profissional e da Saúde, o consenso foi unânime no prolongamento da vida artificial na incubadora natural.

Este complexo episódio demonstra como pode um bom Serviço Nacional de Saúde funcionar em rede: do hospital de residência, aos cuidados intensivos do hospital central, à maternidade que acolhe o alto risco. Não pretendo afirmar que não teria acontecido o mesmo se as três unidades vivessem cada uma isolada, a cuidar dos seus próprios interesses, fazendo contas para gastarem o mínimo possível com tão complicado problema. Poderia, mas não seria aquela a sua lógica de funcionamento. Se as coisas corressem bem, a repercussão mediática seria até maior. Se as coisas corressem mal, alguém teria que pagar os custos extra. Para que conste: a unidade da área da doente é o Hospital Reinaldo dos Santos em Vila Franca de Xira, a unidade onde quase tudo se passou foi o Hospital de São José, pertencente ao Centro Hospitalar Lisboa Central e a unidade onde agora está a criança é a Maternidade Alfredo da Costa, também pertencente ao mesmo Centro Hospitalar. Os dois últimos à espera, desde há meio século, que se construa o Hospital de Todos-os-Santos.