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EDUARDO LOURENÇO, UM SER HETERODOXO

EDUARDO LOURENÇO, UM SER HETERODOXO

Eduardo Lourenço deixou-nos. Eu, que o queria imortal, sabia que um dia tinha de acontecer. Aconteceu no dia da Restauração, no mesmo dia em que, em 2013, morreu Annie Salomon, sua mulher. Coincidência que tendemos a inscrever no plano do simbólico, mas que mais não é que um memorável acaso. Como coincidência foi ter ontem “postado” no Facebook uma foto, em que estou ladeada por Eduardo Lourenço e António Maldonado Gonelha, com o comentário “boas recordações”.

Opinião de:

PPUE 2021

Guardo gratas recordações do grande pensador, ensaísta e filósofo, que descobri pela leitura de “Heterodoxias”. Não da “Heterodoxia I”, publicada no ano em nasci, mas da “II”, cujas ressonâncias me foram chegando na juventude e deixaram marcas indeléveis num tempo de muitas ortodoxias. Fui descobrindo a sua obra singular e plural. Única e diversa. Perdi-me no seu “Labirinto da saudade”, tentando compreender com ele e com Pessoa o que é “ser português”.

Eduardo Lourenço começou por ser para mim um nome de autor sem rosto, dos difíceis, daqueles que fazem pensar. Só mais tarde se deu o encontro entre a leitora e o escritor e, como ele em relação a alguns grandes vultos da Literatura Universal, também eu experimentei “um sentimento de fascínio”. Pude então atribuir um rosto ao nome impresso nos livros e ter o privilégio de privar com este extraordinário e “heterodoxo” ser. De ter chegado ao patamar da amizade.

Desde 1980 que o recordo em múltiplas iniciativas do PS. Sempre disponível e solidário. Participou em almoços e jantares de campanhas eleitorais e deu nome e prestígio às listas que integrou. Escutei-o em conferências e debates. Aprendi muito com ele mesmo nas conversas de ocasião. Com Eduardo Lourenço aprendia-se sempre. Até num telefonema. Mas era a contar pequenas/grandes histórias que seduzia quem o ouvia. Não esquecerei os seus olhos vivos e penetrantes, a sua afabilidade e o seu sentido de humor, a sua letra miudinha e indecifrável, a sua curiosidade pelas novidades terrenas. E já sinto saudades das suas palavras e do seu sorriso matreiro. Como esquecer aquele dia, na livraria Bertrand do Chiado, há meia dúzia de anos, em que me perguntou “o que é isso de selfies de que toda a gente fala” e comigo tirou a sua primeira selfie!

A manhã soalheira deste primeiro dia de dezembro não estava preparada para o luto da Língua e da Cultura Portuguesas, a antecipar o dia de luto nacional pela morte de um dos nossos maiores. O maior pensador, ensaísta e filósofo do século XX.

“Viver sempre também cansa”, dizia o poeta José Gomes Ferreira. Eduardo Lourenço não se cansou de viver. Mas sabia que “não somos os sujeitos de nós próprios. Nascemos embarcados, como dizia Pascal. Depois, somos desembarcados”. Desembarcamos no cais da última viagem. Muito já se disse e escreveu sobre Eduardo Lourenço e muito mais há para dizer e escrever. Mas dele não se poderá dizer que passou “na vida sem a ver”.