Editorial
Sou editora de livros há dez anos, fazendo o meu trabalho num país livre, e por isso há um pressuposto que me é fundamental: a liberdade de expressão. O exercício pleno da minha profissão só é possível na existência desse pressuposto. Fui a única editora portuguesa pessoalmente constituída arguida – e sujeita à medida de coacção de termo de identidade e residência – pelo facto de ter publicado em livro uma investigação jornalística que denunciava centenas de crimes contra os direitos humanos em Angola. Ultrapassado este episódio, não posso deixar de realçar a vantagem de viver numa democracia: o meu caso foi rapidamente arquivado pelo Ministério Público português, sob o argumento de que a liberdade de expressão é um valor mais alto do que aqueles que foram levantados pela acusação contra mim.
Em Luanda, pelo contrário, o caso foi diferente. Uma espécie de reverso do que aconteceu comigo em Portugal. Em Junho de 2015, um grupo de activistas angolanos estava reunido numa livraria a discutir um trabalho de Domingos da Cruz, baseado no livro Da Ditadura à Democracia, de Gene Sharp. Foi quanto bastou para serem todos presos – em “flagrante delito”, conforme alega a justiça angolana. O resultado: quinze detidos e mantidos em cativeiro durante largos meses, num caso que alarmou a comunidade internacional e correu mundo devido à greve de fome de Luaty Beirão. Reivindicando que todos os arguidos pudessem pelo menos aguardar julgamento em prisão domiciliária, Luaty Beirão recusou alimentar-se enquanto isso não acontecesse. A sua luta impressionante durou 36 dias. 36 dias de greve de fome, ao cabo dos quais já pouca esperança restava. E mesmo assim o governo angolano não cedeu. Talvez tivessem deixado Luaty Beirão morrer, caso ele não tivesse por fim desistido, percebendo que é mais útil ao seu país se estiver vivo e continuar a lutar. Muitos meses depois, os quinze arguidos “conquistaram” a prisão domiciliária, e agora aguardam julgamento em casa. Sim: serão julgados por terem lido um livro.
Esta história, que se tornou já um símbolo da liberdade de expressão no século XXI, fez-me perceber de perto a diferença abissal entre viver numa democracia ou num regime autoritário. Quando decidi publicar o livro de Gene Sharp, que era, no fundo, o móbil do crime dos activistas angolanos, fi-lo em nome da liberdade de expressão. As receitas das vendas revertem a favor de Luaty Beirão e dos seus companheiros, e este meu gesto foi precedido pelo do autor, ele próprio activista dos direitos humanos, e o primeiro a ceder gratuitamente a publicação do livro em Portugal. Da Ditadura à Democracia foi publicado em Portugal porque vivemos em democracia e somos livres de ler os livros que quisermos. O eco desta publicação em Angola representa a esperança de que mais pessoas o possam ler em liberdade.