DUAS ENTREVISTAS
Foi não há muito tempo que o escritor inglês, de origem paquistanesa, Hanif Kureishi (há vários livros dele traduzidos em português) deu uma entrevista a “El Pais Semanal”, na qual fala do mundo, da política e da literatura com lucidez e a coragem de a ter (no nosso tempo, a lucidez é uma coragem).
Diz ele, a certa altura: “Creio que há dois grandes temas do nosso tempo: um é o Islão; o outro, a supremacia do neoliberalismo. Em Espanha, sabem isso bem, e em Portugal, e na Grécia. De facto, em todo o Ocidente. Como a gente vive, onde dorme, como sonha, inclusivamente, está marcado pelo neoliberalismo. No Reino Unido, fomos pioneiros nos anos 80 com o thatcherismo. Agora, vivemo-lo em todo o seu esplendor”. E depois de fazer observações muito sábias sobre o Islão e o Ocidente, acrescenta “ A nossa religião verdadeira é o neoliberalismo, o fundamentalismo financeiro”.
Quando o jornalista lhe pergunta se há alternativa, Hanif Kureishi responde: “ Tem de haver. Há muitas formas de capitalismo. Por exemplo, o sistema em que eu cresci, baseado nos direitos sociais, num Estado de bem-estar forte. Também tínhamos partidos de esquerda… Já não resta nada. Inclusivamente, a ideia do Estado de bem-estar foi arrasada. Vivemos na precariedade. Os meus filhos têm menos oportunidades do que aquelas que eu tive. Tenho que pagar os seus estudos e, para mais, esses estudos não lhes vão garantir trabalho”.
A conversa prossegue e, então, é feita a pergunta: “ Em que momento é que mudou tudo?”. Responde Hanif: “ Com Thatcher. Dizia ser uma patriota. Queria tanto à Inglaterra que destruiu o sistema público de habitação, os sindicatos… Reagan fez o mesmo nos Estados Unidos…Resultado? Agora vivemos num fundamentalismo financeiro. Tudo se mede em dinheiro. Em Londres, já só há duas classes sociais: os ricos e os criados. Já quase não há classe média, não se podem permitir viver na cidade. O curioso é que se trata de uma ideologia que a gente não vê. Promete muito – fama, êxito, trabalho, inclusivamente – mas não é mais que publicidade. Que fazemos quando temos dinheiro? Vamos às compras”.
“ A culpa é do sistema? Ir às compras não é obrigatório.”, comenta o jornalista e o escritor responde: “ Certamente, mas aqueles que deviam lutar pelos direitos dos fracos passaram-se para o outro lado. Tony Blair foi um thatcherista. Thatcher disse que o seu maior êxito tinha sido Tony Blair. Estava orgulhosa dele”. Ao ler estas afirmações do autor de “ O Buda dos Subúrbios”, um socialista não fica feliz. Divide-se entre o reconhecimento da razão que elas têm e a mágoa que nos dá ter de reconhecer nelas essa razão.
Por esses dias em que este diálogo com Kureishi foi publicado em “El Pais Semanal”, o socialista francês Michel Rocard deu uma entrevista, de uma grande inteligência melancólica e de uma minuciosa finura analítica, a “ L’Obs”, no número em que a revista exibe na capa a pergunta “ O PS é de direita?”, título de um dossier aí publicado sobre o tema.
Nesse dossier, o filósofo Michel Onfray fala de “ golpe de Estado liberal permanente ”e o secretário-geral do PSF, Jean- Christophe Cambadèlis, não hesita em afirmar que “ a esquerda já não rege o debate político e está na defensiva”, reconhecendo que essa esquerda “ se deixou contaminar pela ideologia dominante”.
Mas o mais interessante do interessante dossier é a entrevista de Rocard. Nela, o antigo primeiro-ministro do presidente François Mitterrand fala com clareza da alarmante situação em que se encontram o Presidente François Hollande, o governo de Manuel Vals e o PS francês. Em dado momento, o jornalista pergunta: “ O PS é ainda de esquerda e os seus dirigentes são ainda socialistas?”, ao que Rocard responde: “ Essa é a única questão que interessa. Evidentemente, e é tempo de o voltar a dizer, o PS, os militantes, meus camaradas de tão longos combates, são socialistas, vigorosamente, até à medula dos ossos. E, na penosa situação actual, o seu desespero não lhes deixa outro meio senão o de lembrar o vigor da sua convicção e mesmo da sua identidade, cada vez mais esquecida ou desprezada fora das suas fileiras. O seu sonho prossegue: uma sociedade de pleno emprego onde reine uma completa igualdade de oportunidades e onde não subsistam desigualdades a não ser aquelas que decorrem dos talentos. Mas eis que a esperança aborta e o sonho morre. De facto, o PS e os seus militantes continuam a ser incontestavelmente socialistas, mas a tragédia é que já não sabem como sê-lo”. Foi esta afirmação que deu o título à entrevista – “ Os socialistas não sabem mais como sê-lo” – e eu vejo nela uma inquietante síntese do que tantos socialistas sentem. Rocard, ao usar nesta passagem a palavra “tragédia”, concede-lhe aquela funda e antiga ressonância na qual ecoa uma aguda interpelação moral e mesmo um ingente desafio existencial.
Estas duas entrevistas ligam-se, na minha leituras delas, como o verso e o reverso de uma medalha em que a face que nos mostra o impasse e a sua catastrófica persistência roda para nos dar a ver a face que nos diz a difícil, mas inadiável responsabilidade de o afrontar.
Não vale a pena esconder, omitir, disfarçar, subestimar, ignorar ou supor. Ser ou não ser – esta é, mais uma vez, a questão. É preciso que os socialistas sejam socialistas, mas eles não sabem como sê-lo!, diz Rocard. Foi aí que chegámos. É aqui que estamos. O facto de termos chegado aqui tem causas alheias e culpas próprias. O pensamento único, com a globalização que lhe corresponde e a Europa disso derivada, imposto pelo unanimismo neo-liberal é a causa alheia. O facto de haver socialistas que isso tenham aceite, às vezes sob a forma de um colaboracionismo oportunista ou indigno, é a culpa própria.
O grande poeta alemão Novalis diz: “ A vida não deve ser/ um romance que nos é dado,/mas um romance que nós próprios construímos”. E avisa: “ Estamos próximos do despertar/ quando sonhamos que sonhamos”. Também os socialistas estarão próximos de saber ser socialistas, se começarem por saber que hoje não sabem como sê-lo.
Para o saber, temos de deixar o “pragmatismo” e o “ realismo”( os neo-liberais adoram estas palavras, dando-lhe um quase estatuto ontológico, e quando elogiam os socialistas é com elas e em nome delas que os elogiam). Esse “pragmatismo” e esse “ realismo”, ilegitimamente absolutizados e falsamente indiscutíveis, fizeram aceitar o inaceitável, levando-nos a isto. Temos de voltar a pensar – a pensar de novo e a pensar o novo. Temos de restituir ao espírito crítico os seus direitos de alteridade e de insubordinação, pois esse é um dos melhores legados do nosso património ético, filosófico e político.
A consciência de estarmos no início do caminho que ainda não fizemos não nos deve paralisar, nem atemorizar, nem confundir. Deve, pelo contrário, exigir-nos uma nova atitude, uma nova energia, uma nova coragem, um novo olhar e um novo horizonte.
Mesmo sabendo que, no governo, os socialistas têm de responder às perguntas do dia, atacar os problemas da hora e resolver as urgências do minuto, devem faze-lo com a certeza de que isso não nos pode esgotar e nós não nos podemos esgotar nisso.
É verdade: o nosso trabalho não é olhar para o mundo como ele foi (antes de tanta mudança). É olhar o mundo como ele é (depois de tudo o que mudou e enquanto tudo continua a mudar). Mas olhar o mundo, analisá-lo, compreende-lo como ele é, não é aceitá-lo. Não é sobretudo aceitá-lo incondicionalmente, com reverência, submissão e obediência. O socialismo – democrático, reformista, progressista – para saber sê-lo, e para sê-lo, precisa de ousar recusas firmes e claras. É esse o seu poder, a sua justificação, a sua aura.