Dívidas a Soares
Tudo parece ter sido já dito. Soares foi glorificado, incensado, reconhecido por adversários e até tolerado pelos contrários. Alguns, muito poucos, da minha geração vieram dizer o mais importante: Soares ganhou, na geração imediatamente posterior, a que nasceu das lutas académicas e depois absorveu a política até ao tutano, a progressiva adesão, desde a desconfiança inicial até à comunhão de pontos de vista. Porquê?
Mais do que ter historicamente razão, por ter lutado sempre, mesmo contra nós, até aos tempos mais recentes. Muitos de nós, descrentes do Soares que confundíamos com os velhos republicanos, subimos aos céus do radicalismo e caímos depressa na acomodação. Outros, desistiram de uma sinuosa política que não estavam preparados para entender, nem para aceitar na servidão do pluralismo. Outros ainda serviram-se de Soares para alcançar conforto e respeitabilidade. Outros a ele aderiram desde logo, isto é, desde 1974, e o acompanharam lutando mesmo contra os seus antigos companheiros de luta e bem andaram. A minha geração levou entre cinco e dez anos a aderir a Soares. O toque a rebate foi no MASP de 1985. Excessivo tocar os sinos, parece hoje, quando o adversário de então passou a seu aliado e amigo fraterno. Mérito de ambos, sim, mas sem a bonomia de Soares, nada disso teria acontecido.
Alguns dos aderentes tardios talvez tenham passado a ser mais soaristas que Soares, é da história. Mas a verdade é que entraram e jamais saíram, encantados pelo fulgor do personagem e satisfeitos por poderem concretizar sonhos de execução impossíveis noutros quadrantes. Muitos continuam na luta, mas nenhum de nós ombreou com a anergia permanente de Soares. Foi o essencial do que o distinguiu. Quando todos esperavam uma velhice tranquila, apesar de ter sido por ele prometida, irrequieto, voltou às lutas, mesmo contra o parecer de filhos e amigos. E sobretudo depois, quando o unilateralismo de Bush filho e a insensatez de Barroso pretenderam envolver o mundo numa aventura iraquiana, voltou o combatente de fibra. Certamente a leitura, a conversa mole, a contemplação estética, a escrita para que era excecionalmente dotado, os prazeres da vida não lhe eram indiferentes, mas foi a luta que o chamou. Não conheço, entre várias gerações muitos que resistissem à acomodação. Grande e querido rebelde.