Despeço-me
Se Japão, Coreia do Sul, Singapura e Índia são agora os campeões do crescimento, a China está em vias de conseguir a acoplagem de dois veículos espaciais, repetindo e avançando nos êxitos dos EUA de há quinze anos. Os Povos do Centro e Sul América saem aos zig-zagues de ditaduras, do narcotráfico e da corrupção. Os de África melhoram na sua esperança de vida pelo progresso contra os três grandes flagelos, sida, malária e tuberculose. No Médio Oriente tudo vai mal, a Síria fazendo esquecer o conflito Israel-palestina. A oriente da Europa fabricam-se e exportam-se armas de crescente letalidade. O mundo está difícil de entender, até pelo longo hiato de governo que durará até Fevereiro nos EUA. Putin avança como faca na manteiga, impune, jogando na ambiguidade apalhaçada de um candidato desastroso e de uma futura Presidente que ainda tem que conquistar o coração dos eleitores.
Entre nós, aqui no ensolarado retângulo, escapamos e acolhemos estudantes sírios com o mesmo calor com que instalamos os franceses a comprarem casa com isenções fiscais por dez anos. Por esse lado, até parece que o País está sempre em festa. Há mais emprego, mais intenções de investimento, provavelmente mais rendimento distribuído, um pouco mais de consumo, mas a economia não dá sinais de crescer, pelo menos de acordo com as métricas costumeiras. Muita coisa mudou já e outra vai mudando. Todos percebemos de há muito o quanto beneficiamos da Auto-Europa e estamos ansiosos por outra que parece prometida, sabendo bem que a fileira a montante, na fabricação dos componentes, é porventura tão importante com a do produto final que se exporta. Surpreendemo-nos ainda com as vitórias nos sapatos, têxteis, cortiça, moldes e agroindústrias sobre a rotina da anterior pobreza tecnológica. Quando vamos estudar essas fileiras encontramos muita geração de conhecimento, ligação à universidade e sobretudo ambição e boa gestão. Essa gente que cria riqueza, bem diferente da que a destruiu na banca, estranha os jogos de poder, não utiliza ideologia como componente produtiva e reconhece bem o valor do capital humano. As relações de trabalho mudaram profundamente, muitas vezes para melhor, mas nem sempre.
Na fase final da minha vida ativa entro agora em um mundo que é essencial para o nosso futuro: o da concertação a três, se bem que eu pouco mais seja que um mordomo agaloado da mesa negocial. O desafio de passar de mordomo a comparsa será imenso, porventura inatingível. Mas não tenho o direito de me limitar a servir à mesa, hierático e inerme. Esse desafio exige independência de prática. Não me transformo em eunuco político, condenado a calar a minha expressão pública individual. Mas, por imperativo cívico e por respeito para com a pluralidade que me elegeu, tenho que interromper estas crónicas. Aqui me despeço dos leitores da Ação Socialista Digital, desejando a todos um futuro melhor que aquele que hoje nos concedem as malhas tecidas pelos fracos impérios a que pertencemos.