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Democracia com adjetivos

Democracia com adjetivos

Opinião de:

Democracia com adjetivos

1. Dizer que Mário Soares foi o principal protagonista político da implantação e consolidação da democracia constitucional de que fruímos há mais de quatro décadas é consensual, mas é pouco. Importa também ter em conta que no pensamento e ação do já histórico político e homem de Estado socialista esteve sempre um regime democrático bem característico – uma democracia liberal, representativa, parlamentar e social –, pela qual travou as suas principais batalhas políticas, antes e depois do 25 de Abril.

É bom de ver que a democracia por que Soares lutou estava nos antípodas da ditadura salazarista – antiliberal, antidemocrática, antiparlamentar, antissindical e plutocrática – mas divergia também substancialmente do mainstream da oposição ativa ao Estado Novo, protagonizada pelo PCP, inspirada nos modelos de “democracia popular”.

2. A opção pela democracia liberal – a que Soares preferia chamar “democracia pluralista” ou “democracia em liberdade” – começa muito antes de 1974, na constituição de uma tendência oposicionista inspirada na social-democracia europeia, corporizada na criação da ASP, na candidatura da CEUD em Lisboa nas pseudoeleições de 1969 e depois na criação do PS em 1973.

É essa opção que vai marcar o grande conflito político de 1975 contra o PCP e a esquerda radical e culmina na aprovação da Constituição de 1976, que, apesar de todas as condicionantes iniciais, institucionaliza um regime democrático assente nas liberdades políticas, no pluralismo partidário, em eleições livres e na dialética governo-oposição, sendo uma peça essencial daquilo a que Huntington designou como a “terceira vaga mundial da democratização”.

3. Menos visível, mas não menos importante, foi a luta pela democracia representativa contra as tentações plebiscitárias ensaiadas depois da revolução, tanto no período transitório (Palma Carlos e Spínola) como depois da Constituição, entre 1976 e 1982, através de propostas de sujeição da Constituição a uma reforma profunda aprovada diretamente por referendo capitaneado pelo Presidente da República.

Em todas essas ocasiões Mário Soares não hesitou na oposição a tais manobras. Não ignorava que a ditadura salazarista se legitimara constitucionalmente através do plebiscito nacional de 1933 e que os autoritarismos e cesarismos de vária espécie não hesitaram em recorrer ao plebiscito e à decisão popular direta para fundar a sua tomada do poder. Não foi por acaso que a Assembleia Constituinte, dominada pelo PS, excluiu qualquer expressão referendária, a começar pela reforma da própria Constituição.

Para Mário Sores a verdadeira democracia era a democracia representativa, ou seja, a democracia eleitoral, assente na competição dos partidos políticos pelo voto dos eleitores, na separação de poderes e na responsabilidade política dos representantes.

4. O terceiro aspeto da conceção soarista da democracia é de democracia parlamentar, avessa a qualquer forma de presidencialismo governante e baseada na origem e responsabilidade parlamentar dos governos.

Fiel à tradição republicana portuguesa, Soares execrava todas a formas de sidonismo e de irresponsabilidade parlamentar dos governos, como sucedia com o “presidencialismo” do Estado Novo. Mas também compartilhava da então hostilidade dos socialistas franceses contra a cooptação presidencialista e a emasculação parlamentar da V República pelo General De Gaulle.

Só a necessidade de assegurar a realização das eleições para Assembleia Constituinte e a constitucionalização da revolução levou Soares a aceitar o equívoco semipresidencialismo da versão originária da Constituição, em que o Presidente da República, além de presidente do Conselho da Revolução e de chefe do Estado-Maior.-General das Forças Aramadas (aqui sem base constitucional), tinha também o poder discricionário de demitir o Governo, que dependia da sua confiança política.

Mas o contencioso dos seus dois governos com o Presidente Ramalho Eanes, a controversa demissão do II Governo, a tentativa de três governos de iniciativa presidencial constituídos à margem do parlamento e o lançamento de um movimento de presidencialização do regime (não desautorizado por Belém e em que participavam antigos ministros do PS!), convenceram Soares de que a revisão constitucional que havia de pôr termo ao período constitucional transitório tinha de corrigir os traços mais “semipresidencialistas” do sistema. O que foi feito na revisão constitucional de 1982, operando uma modificação substancial do sistema de governo.

Ele próprio se encarregaria depois, como Presidente da República ao longo de uma década, de modelar exemplarmente o papel presidencial na nossa democracia parlamentar, como “quarto poder” independente da dialética governo-oposição, garante e válvula de segurança do regular funcionamento das instituições e titular de uma “magistratura de influência” política sem ingerência nas funções governativas.

5. Finalmente, uma democracia com uma forte dimensão social, baseada nos direitos dos trabalhadores e em direitos sociais universais (educação, saúde, segurança social).

Para Mário Soares, independentemente das opções sobre o regime económico, a democracia num país pobre e sem cultura democrática enraizada, como Portugal era então, só poderia vingar e consolidar-se se acompanhada de ganhos firmes na área social. A experiência da I República e de outras democracias parlamentares falhadas no século XX, na Europa e fora dela, ensinavam que sem progresso social as democracias podem perder a batalha política. Por isso, Soares pôde aceitar guardar o socialismo económico “na gaveta” e refundar a “constituição económica” da CRP, mas nunca abdicou de cumprir a fazer cumprir a “constituição social” de 1976.

Não é por acaso que se deve a governos socialistas, e desde logo aos que ele chefiou, as grandes conquistas do Estado social entre nós: criação do SNS, universalização da segurança social (incluindo o sistema de pensões), consolidação e expansão do ensino básico e dos demais graus de ensino, garantias do direito à habitação, rendimento mínimo garantido, etc.

Eis porque Mário Soares não pode deixar de ter assegurado um lugar cativo na história política portuguesa e em especial na construção e condução da República constitucional implantada há quarenta anos.