Defender a democracia representativa
Outros estarão acantonados na posição fácil de quererem olhar só para um aspeto do problema, esquecendo, contudo, que esta situação complexa tem de ser vista de vários ângulos. O PSD e o CDS, embora constituindo a candidatura que teve mais votos, esquecem que mais de 60% dos votantes escolheram candidaturas que se opõem claramente à política de austeridade violenta que prosseguiram nestes últimos quatro anos. O PCP e o BE, embora reclamando com razão que o prosseguimento da política de empobrecimento não obteve uma maioria suficiente para governar, não podem ignorar que o país não pode satisfazer-se com uma maioria negativa, ou de bloqueio, porque não podemos somar a uma crise económica e social uma crise política. O PS não pode ignorar nenhum dos lados do problema – e, precisamente por isso, tomou a iniciativa de conversar com todos os demais partidos parlamentares para averiguar das condições de governabilidade no novo quadro político.
Nenhuma das soluções possíveis é fácil, errará quem deposite certezas absolutas em qualquer uma das saídas. Tudo o que pode ser feito nos momentos de importantes encruzilhadas comporta riscos – mas é obrigação dos políticos a sério correr riscos. Não em nome das pequenas glórias transitórias, de cargos ou de facilidades, mas a pensar no país e na evolução da democracia representativa.
Vale a pena correr riscos para impedir a captura do nosso sistema democrático por aqueles que querem sobrepor critérios oportunistas em prejuízo do quadro constitucional. E, aqui, é uma causa nobre dar combate ao argumento central da Direita para tentar impugnar a legitimidade de um governo assente num entendimento à esquerda (entre PS, PCP e BE). O argumento é que o PS não colocou essa questão a debate antes das eleições. Esta teoria já foi abundantemente desmontada por quantos lembraram que António Costa e o PS repetidamente escreveram e disseram, em discurso direto e em textos programáticos (principalmente, a Moção Política sobre as Grandes Opções de Governo apresentada às Primárias do PS e a Moção Política aprovada no XX Congresso Nacional) que recusamos a teoria do arco da governação. Isto é, afirmamos há muito não haver justificação para excluir sistematicamente certos partidos da responsabilidade de governar, e que o afastamento prolongado de sectores significativos do eleitorado da partilha de responsabilidades de governar representa um empobrecimento da democracia. A afirmação de que não governaríamos “com esta direita” foi repetida em vários formatos, teve grande destaque mediático e foi mesmo objeto de campanha dos nossos adversários. Não se pode dizer que o PS tenha escondido a sua abertura a soluções como as que agora estão a ser ponderadas, pelo que este argumento da ilegitimidade é, claramente, insustentável.
Vale a pena correr riscos para trazer um milhão de eleitores para o “arco da responsabilidade”. Se tantas vezes criticámos o PCP e o BE por se comportarem como meros partidos de protesto, e essa crítica era razoável, temos, assim, a noção clara de quão importante seria trazer os eleitores desses partidos para uma partilha de responsabilidades mais exigentes – as responsabilidades inerentes a pensar, já não apenas do ponto de vistas da oposição a certas políticas, mas do ponto de vista da construção de soluções capazes de enfrentar com sucesso o choque da realidade governativa.
Ao longo da sua história, o PS já deu muito à democracia portuguesa. Valeria a pena correr riscos para, quarenta e tal anos depois do 25 de Abril, alargar o “arco da responsabilidade” para além de um “arco da governação” desprovido de qualquer lógica à luz da Constituição e das exigências de uma democracia representativa completa.