Cuidados de outono
E não adianta referir que se trata da grande cabala das notadoras e do capital circulante. Já não bastam as crises profundas de grandes clientes externos, como a Rússia e mais perto de nós Angola e o Brasil. Já não basta a incerteza projetada sobre as eleições americanas pela súbita pneumonia de Hillary Clinton. Já não basta a tortura chinesa que os britânicos infligem ao Continente, declarando saída e deixando-se ficar o maior tempo possível. Já não basta a arrogância de quem exibe excedentes comerciais sólidos, pagando mal aos trabalhadores por ter uma legião deles, pronta a arrojar-se a pedir emprego. O mundo fecha-se contra nós. Nada de deliberado nem de organizado, a simples rejeição do pequeno esforço de nos mantermos à tona da água, num mar onde era suposto já estarmos afundados em novas austeridades.
Claro que menos de um ano bastou para sabermos quão encardida estava a “saída limpa”. Que podres estavam no sistema bancário que nos fizeram desembolsar algum do que carecíamos para nos reerguermos? Que fictícia recuperação era aquela de 2014 que desandou logo em meados de 2015? Que arrogância nos levou a não utilizar os empréstimos para salvar a banca quando já alguns então diziam não serem eles suficientes?
Descomprimimos, dançámos de alegria com o Euro, o Presidente levanta vagas de afetos e multidões de bem-dispostos. Até nas mortes parecemos alegres. Mas não basta. É necessário gerir com pinças o que nos chegou à martelada. E tal não se pratica nem com experimentalismos nem dividindo o País em dois. Os experimentalismos são sempre pouco avisados e então os fiscais pior ainda. Talvez seja tempo para uma avaliação independente sobre se a baixa do IVA da restauração, que tanto criticámos na sua subida, está a gerar o efeito desejado no emprego, pela sua descida. Talvez seja altura de reconhecer que os antecessores procuraram (não sei se conseguiram) alguma equidade fiscal para os mais frágeis e que regressar a um modelo que os proteja à custa da classe média pode ser cavar um fosso ainda maior que o anterior. Talvez seja a altura da simplificação fiscal. Todos os governantes da área financeira e económica deveriam ser obrigados a apresentar uma experiência empresarial prévia, pequena que fosse, para saberem como custa pagar IVA a tempo (e sofrer quando não), pagar IRS e também IVA, real e antecipado, pagar IRC antecipado e real, pagar, pagar, pagar: o IMI a subir, as rendas da habitação taxadas a 28%, o juro dos depósitos a evaporar-se. Ser rico deve ser difícil, não sei, nunca o fui, mas ser remediado é hoje um inferno.
Pela Europa fora a criação de contribuições sociais generalizadas, no final do século passado, veio ao menos irmanar fiscalmente os contribuintes. O que temos aqui é uma fratura entre os que pagam e os que não podem pagar. Tudo bem se os que pagam aguentarem a incidência. Razões para pensar nessa coisa do IRS e seus escalões, na necessidade de se baixar o IRC, essencial para o investimento aparecer, em nos libertarmos dos enleios administrativos da burocracia bruxelense na administração de fundos e que tão servilmente copiámos. E garantirmos estabilidade fiscal. Este não é um setor de engenharias financeiras. Cada mexida levanta a poeira da desconfiança e o rancor dos prejudicados. Sem que seja sempre líquido que as mexidas foram boas.