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António Costa: “O euro foi o maior bónus à economia alemã que a Europa poderia ter oferecido”

António Costa: “O euro foi o maior bónus à economia alemã que a Europa poderia ter oferecido”

Entrevista ao Jornal Público publicada na edição de 24 de março de 2019
Financiamento superior a 70 milhões de euros para laboratórios colaborativos

António Costa vê a Europa do lugar que ocupa à mesa onde se tomam todas as grandes decisões europeias. O que lhe dá uma visão, ao mesmo tempo, mais optimista sobre o futuro, mas mais realista sobre o presente. A sua batalha foi e é pela conclusão de uma reforma da zona euro que garanta a convergência real entre as suas economias. O primeiro-ministro entende que Portugal só pode ter futuro como país aberto ao mundo numa Europa aberta ao mundo. Nona entrevista da série A Europa e o Presente.

António Costa continua a bater-se pela conclusão da reforma do euro, antes que novo choque atinja os países da união monetária. E justifica porquê: sem o euro, é difícil garantir a sobrevivência da Europa. O primeiro-ministro português elogia o Presidente francês Emmanuel Macron, mas também critica a redução das democracias liberais à distinção entre abertura e fechamento, que acaba por excluir a possibilidade de alternativa dentro do próprio campo democrático. Lembra que há hoje no Conselho Europeu uma grande aliança que vai do primeiro-ministro grego Alexis Tsipras à chanceler alemã Angela Merkel na defesa de uma visão comum sobre a Europa e os seus valores. Mas também pugna por uma “aliança progressista” que vá do primeiro-ministro grego ao Presidente francês, fundamental para lutar por uma dimensão social da integração europeia. Nesta conversa, António Costa critica ainda a tentação proteccionista e a ideia de “campeões europeus”, que apenas serve para concentrar a riqueza e os recursos humanos no centro e desertificar as periferias.

Houve uma crise financeira mundial, uma Grande Recessão, uma profunda crise do euro que colocou a Europa à beira do abismo, fizeram-se reformas, a economia retomou. Aparentemente, ninguém viu chegar uma profunda crise política que hoje se vive nas democracias europeias, com reflexos profundos na própria União Europeia. Hoje, os governos começam a ter consciência da gravidade da crise. Se estiver de acordo com isto, como explica esta relutância inicial em ver os sinais?
Houve, de facto, movimentos invisíveis que não se viram chegar. E há, por outro lado, uma tendência para facilitar consensos que são indispensáveis quando se funciona a 28 com uma grande diversidade de países, para ultrapassar os problemas…

E esperar que os problemas se resolvam por si.
Exactamente. Mas, na sua pergunta, pode deduzir-se que a questão do euro é uma questão resolvida. Não é. E o pior erro que poderíamos cometer era, à boleia da tendência de crescimento económico e de criação de emprego que se verificou, termos a ilusão de que os problemas estruturais da zona euro ficaram resolvidos. Ora esse foi o erro que nos acompanhou desde 2000 até 2011.

Já vamos à reforma do euro, mas não é só esse erro que justifica a crise política que se vive hoje na União e que também tem que ver com a solidez das suas democracias. E, como referiu na sua intervenção na conferência promovida pelo PÚBLICO no Porto há uma semana, estamos a viver uma crise dos próprios valores em que assenta a integração europeia.
Há várias linhas de fractura. Em primeiro lugar, quer nos países mais antigos da União Europeia, como a França, quer nos países que aderiram mais recentemente, como os da Europa de Leste, há uma crise dos valores demo-liberais. As causas não são, porventura, muito distintas das que acompanharam outros acontecimentos como a eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, ou de Jair Bolsonaro, no Brasil. Creio que isso tem que ver com a reacção política ao enorme aumento das desigualdades que se tem verificado desde a década de 1980 até agora e que atinge hoje violentamente as classes médias, que são o suporte sociológico das democracias. As classes médias sentem-se excluídas pelo sistema, deixam de ter expectativas de futuro e de progressão, sentem que o processo de ascensão social se esgotou na sua geração e que o futuro dos seus filhos é uma vida pior. É isso que cria as condições para uma certa fractura entre as classes médias e o sistema político e creio que é essa fractura que tem aberto espaço para…

… a emergência destes movimentos nacionalistas…
Sob formas diversas. Tem correntes nacionalistas de diferentes naturezas que não se expressam necessariamente contra a democracia. Tem manifestações de xenofobia, que não são necessariamente sempre coincidentes com o nacionalismo. Tem já derivas autoritárias. Creio que esta “malaise”, chamemos-lhe assim, tem tido alguns elementos de catalisação. Nuns casos, foi a crise económica; noutros, a crise dos refugiados, noutros ainda, é uma realidade mais complexa, como são os casos de alguns países da Europa central e de leste, onde não há imigração, que foram menos atingidos pela crise da zona euro e onde, em alguns deles, pode encontrar explicações históricas.

Mas, justamente, a História europeia ainda está bastante presente para nos servir de alerta sobre os perigos do nacionalismo. E nota-se, por vezes, uma certa subestimação desse perigo, tentando até integrá-lo na governação.
No Conselho Europeu, creio que não há subestimação. Tem havido, sim, alguma dificuldade em identificar as causas e, sobretudo, em encontrar as melhores terapias. Na mesa do Conselho Europeu, o discurso e as políticas nacionalistas resumem-se a três casos: aos líderes da Polónia, da Hungria e da República Checa. Ainda que com matizes bastante diferentes. Não podemos ignorar que, em todos os outros países com raríssimas excepções, há manifestações fortes da extrema-direita e num dos principais países da União Europeia, a Itália, a extrema-direita está sentada no Governo e detém hoje a primeira posição em todas as sondagens, e que, num grande país como a França, pela segunda vez quem passou à segunda volta das presidenciais foi um partido de extrema-direita.

A primeira foi em 2002.
E há cinco anos, [em França] a Frente Nacional [agora União Nacional] ganhou as eleições europeias. Há consciência de tudo isto. O mais perigoso é quando os partidos das grandes famílias demo-liberais tendem a considerar que a melhor resposta que têm a dar a este fenómeno é mimetizarem algumas das suas propostas. Vemos alguns partidos, sejam eles liberais, conservadores e mesmo sociais-democratas, a terem sobre a imigração posições que, no fundo, acabam por legitimar o discurso da extrema-direita. Mas isso também teve uma virtualidade: ajudar a superar divisões que a crise de 2011 tinha aberto e, hoje, no Conselho Europeu, pode ver um grande bloco que vai de Alexis Tsipras a Angela Merkel na defesa de uma visão comum sobre a Europa e os seus valores. Com divergências, naturalmente, sobretudo nas matérias económicas e sociais. Mas, sobre a essência da União Europeia, há hoje um consenso muito mais alargado.

O que o Presidente Macron trouxe de novo ao debate político foi a ideia de que hoje, nas democracias, a grande divisão já não é entre esquerda e direita, mas entre a abertura e o fechamento. Essa sua ideia de que há uma ampla frente democrática, liberal e europeia, que vai de Tsipras a Merkel, vem nesse sentido?
Essa ideia é verdadeira em relação a uma linha de fractura fundamental que tem que ver com a visão da sociedade em que queremos viver. Mas essa ideia também é instrumental para a táctica política do Presidente Macron, que se quis, precisamente, afirmar como o representante de todo o campo demo-liberal contra a extrema-direita.

E que resultou.
Foi muito eficaz do ponto de vista eleitoral, mas pode ser muito perigoso do ponto de vista político, porque esvazia completamente a possibilidade de alternância dentro do campo democrático e coloca a escolha entre ele e a extrema-direita.

Em segundo lugar, depois desta escolha fundamental que é a dos valores da Europa, há todo um mundo de debate político dentro desse espaço. Defendermos o pilar social da União ou não; termos como prioridade a redução das desigualdades ou não; que política económica devemos prosseguir; como é que nos tornamos competitivos de forma sustentável ao nível global — e aqui há divergências, que são saudáveis.

Porque reduzem o campo aos movimentos radicais?
Exactamente. Cujo crescimento resulta também da percepção de que, no quadro dos partidos tradicionais ou dos partidos de centro, não há diferenças que possam gerar uma alternativa. Este é um dos problemas mais complexos que a própria União Europeia impõe, porque vive institucionalmente e necessariamente num sistema de grande coligação. Na Comissão há comissários escolhidos por governos que representam diferentes famílias políticas — democratas-cristãos, conservadores, liberais, socialistas. No Conselho também, pela sua própria natureza, na medida em que representa a diversidade dos governos e, no final do dia, temos de nos entender. Como tudo isto se traduz em actos legislativos e políticos que devem ser transpostos para os direitos nacionais dos 28 Estados-membros, isso também gera uma grande uniformização.

Criou a sensação nas pessoas de não haver alternativa, colocando as alternativas fora do campo democrático?
É uma das razões pelas quais, por exemplo, no caso português, ter sido possível, em Novembro de 2015, fazer uma mudança de política que acabou por ser fundamental para reconciliar o país com as instituições democráticas e com a própria União Europeia. Se for verificar a evolução do apoio dos portugueses à União Europeia no Eurobarómetro, há uma clara revalorização, passando de valores muito baixos para o regresso aos valores de um dos países que mais apoiam a Europa. As pessoas têm de sentir que, dentro do campo democrático, têm as escolhas alternativas — sem terem de gerar movimentos como os Coletes Amarelos e sem terem de entregar o seu voto a partidos radicais ou entrarem em rupturas anti-sistema por via do nacionalismo.

Mesmo assim, depois desta crise profunda que a Europa viveu e das suas consequências políticas, que ainda vive, temos a sensação de que se regressou ao business as usual. Não se vê, por exemplo, uma preocupação maior com uma agenda social. Porquê?
Porque a correlação de forças é claramente desfavorável. Conseguiu-se avançar, na Cimeira de Gotemburgo, na afirmação dos princípios do pilar social europeu, mas passar desses princípios para um programa de acção e para a sua tradução em políticas tem suscitado uma enorme resistência. Mas aí a social-democracia tem de ser capaz de regressar aos seus valores fundamentais, como está a acontecer agora na Alemanha, e afirmar claramente que a concretização desse pilar social é a condição fundamental para reconciliar as classes médias com a Europa e com as sociedades democráticas.

Por isso lhe perguntava se não tem havido dificuldade em tirar as lições da crise financeira de 2008.
A forma como a União geriu a mudança de política em Portugal em 2016 acabou por revelar que era possível impor essa mudança contra aquilo que era o discurso oficial de Dombrovski [comissário letão para o euro], de Schäuble [anterior ministro das Finanças alemão] ou Dijsselbloem [anterior presidente do Eurogrupo, holandês].

Por acaso, um socialista.
Sim, mas a verdade é que as sanções que nos queriam impor acabaram por não passar.

Porque Portugal cumpriu…
Na altura, ainda não tínhamos saído do procedimento por défice excessivo. Foi o reconhecimento, pela primeira vez, por parte da Comissão de que era possível, com outra política, cumprir os objectivos e foi também um voto de confiança. E isso ajudou muito à gestão inteligente que foi feita agora sobre a apreciação do Orçamento italiano para 2019.

Ninguém esticou a corda?
Houve uma abordagem distinta, como houve relativamente à França ou como tem havido em países como a Espanha, uma enorme compreensão sobre…

… a forma como é cumprida a redução do défice…
Nem podemos sequer falar de redução. O espírito é hoje muito distinto. Posso falar como o meu colega holandês [o primeiro-ministro Mark Rutte] sobre o orçamento da zona euro, e a conversa tem princípio, meio e fim e continua numa nova conversa. Há três anos, o tema não entrava sequer na ordem de trabalhos. Aliás, no Conselho Europeu de Dezembro passado, foi dado ao Eurogrupo um mandato claro para apresentar uma proposta de orçamento da zona euro em Junho. E agora já está a ver a Alemanha e a França a apresentarem uma proposta comum que é exactamente a mesma que Portugal apresentou há dois anos. Aliás, ouviu-a.

Em Bruges, no Colégio da Europa.
Exactamente.

Falta ainda definir qual é o valor atribuído a esse orçamento.
Por acaso já há, na proposta da Comissão para as Perspectivas Financeiras Plurianuais, uma verba de 23 mil milhões de euros para uma rubrica designada por “reform delivery tool”, que pode ser a base desse instrumento.

Há uma mudança, é o que quer dizer?
Há uma mudança em curso. A questão é saber se essa dinâmica se acelera ou se, pelo contrário, regride. É evidente que há, depois, várias outras crises sobre outros temas, que acabam por perturbar a dinâmica normal da resolução dos problemas.

Quais?
A crise dos refugiados paralisou durante quase um ano o debate sobre a reforma da zona euro. O “Brexit” paralisou-a mais outro ano. O problema é que, na União Europeia, não temos de lidar com uma única crise. Que é tudo imutável, como subentende na sua pergunta? Bom, houve um salto extraordinário, que foi dado nos últimos dois anos, sobre o mecanismo europeu de emergência da protecção civil na sequência dos dramáticos incêndios em Portugal. Tiveram um impacto tal na União que avançámos numa matéria que estava em discussão desde o tempo em que eu e o antigo Presidente Sarkozy éramos ministros da Administração Interna. A Comissão foi repegar uma proposta que Michel Barnier apresentou nessa altura como comissário. Hoje há uma capacidade de resposta maior do que havia. Mas também há muito tempo que a União não estava sob tantas pressões e de natureza tão distinta. O que leva, aliás, as alianças entre os Estados-membros a ser de geometria variável. Quando discutimos o euro, as alianças são umas, quando discutimos a imigração, são outras, quando discutimos o Quadro Comunitário de Apoio, são ainda outras. Isto cria uma grande complexidade, mas cria também uma vantagem: nunca estamos todos contra todos em todos os temas.

Mesmo assim, há duas questões que sobram do que disse. Primeiro, a reforma do euro não está concluída e a necessidade de concluí-la nem sequer é mencionada na carta de Emmanuel Macron aos europeus e, muito menos, no artigo de resposta da sucessora de Merkel à frente da CDU, Annegret Kramp-Karenbauer [AKK]. Há uma rendição à Alemanha?Não.

AKK não quer ouvir falar da mutualização da dívida, não menciona a união bancária, insiste na rejeição de uma “Europa de transferências”.
São coisas distintas. A Europa arrisca-se a perder uma oportunidade rara: ter uma chanceler alemã com força política suficiente no seu país para promover as mudanças de que já hoje tem consciência que são necessárias na Europa, somada à energia de um novo Presidente francês com ambição e uma grande legitimidade.

Mas foi isso precisamente que não aconteceu.
Pois, mas espero que essa oportunidade ainda não se tenha perdido. A precoce deslegitimação da chanceler pelo anúncio da sua saída e as dificuldades da vida política interna francesa têm vindo a ser compensadas pelo facto de existirem no Conselho Europeu outras formações políticas que ganharam um peso acrescido e que podem contribuir positivamente para fazer avançar as coisas. Mas não se esqueça que, desde a Declaração de Meseberg [Junho de 2018], que a França e a Alemanha assumiram uma posição comum sobre o orçamento da zona euro, ultrapassando alguns dos principais bloqueios. A grande discussão foi em torno da função deste orçamento: se serve para responder a choques, como defendia Macron, ou se deve ser sobretudo para promover reformas que permitam a convergência económica. Portugal sempre disse que a prioridade tinha de ser financiar reformas para melhorar a convergência, sem prejuízo de dever ter também uma função de estabilização.

Porquê? Porque sabia que havia um limite para as cedências da Alemanha?
Porque tínhamos bem consciência de que a forma de podermos avançar com o orçamento da zona euro era ganhar o apoio da Alemanha, ganhando depois o apoio dos países governados pelos liberais como a Holanda e a Finlândia, e que, para isso, era fundamental que a sua primeira função fosse financiar reformas. Ora, hoje já há um consenso sobre essa função de convergência. Falta o passo seguinte, de uma função de estabilização perante choques assimétricos. Mas aí as diferenças já não são entre países. Dentro do Governo alemão, tem o ministro das Finanças, Olaf Scholz, a defender a posição dos socialistas, aceitando que a função de estabilização deve ser assegurada por um seguro europeu de desemprego, e tem a chanceler Merkel a dizer que não. Mas também tem um Presidente liberal, como Macron, a defender o mesmo que os socialistas.

A fractura Norte-Sul consegue ultrapassar-se por essa via? É o que está a dizer? Porque, às vezes, essa fractura não é apenas entre esquerda e direita.
Não é necessariamente ideológica, tem muito que ver com a cultura dos diferentes países. Mas ela foi-se esbatendo progressivamente por várias razões. Primeiro, porque houve uma avaliação bastante mais realista sobre as razões das crises nos países do Sul. Em segundo lugar, a demonstração, quer pelo Governo português quer pelo grego, de que a orientação política não era incompatível com o cumprimento dos compromissos. Em segundo lugar, a emergência da crise dos refugiados reaproximou muitos governos que estavam mais afastados. Finalmente, há hoje uma maior compreensão de que não olhar para as crises sociais, para as crises económicas, para o medo que os cidadãos têm das consequências da globalização…

… tem consequências políticas muito negativas…
Consequências sistémicas muito negativas e que atingem todos.

Voltando a duas questões que sobram da gestão económica da zona euro e do que pode ser uma nova dimensão social da União Europeia. Um exemplo: Mark Rutte invectiva contra o orçamento da zona euro, embora tenha agora cedido alguma coisa, invectiva contra qualquer aumento do Orçamento Plurianual, mas não tem qualquer problema em fazer da Holanda, não digo um paraíso fiscal, mas um país muito atractivo do ponto de vista da fiscalidade das empresas. Parece-lhe justo? Não há aqui a imposição de uma visão que apenas serve a alguns, que são sempre os mesmos?
Jean-Claude Juncker costuma dizer que não há um regime de atractividade fiscal na Europa, há 28.

Só que uns atraem mais do que outros.
Os países da União têm de perceber que hoje, na economia, a globalização faz com que a zona euro não possa ser um espaço de competição interna entre países, mas tem de ser, ela própria, um espaço de competição à escala global.

O problema é que continua a ser um espaço de competição interna entre países.
Mas, enquanto for, seremos sempre mais fracos na competição global. As consequências são sempre negativas. Ou se traduzem no acentuar dos desequilíbrios internos da União, que acaba por afectar todos, como aconteceu em 2011; ou é uma reacção de fechamento em relação ao exterior; ou se traduz na tentação de distorcer a concorrência entre as empresas em benefício da criação de grandes campeões europeus.

Já lá vamos. Neste caso, é a questão específica da concorrência fiscal.
O que temos de fazer, que o Tratado de Lisboa já permite, é avançar para formas de cooperação reforçada que permitam ir criando as bases para sucessivas formas de harmonização fiscal, que acabam por envolver os países da zona euro. Temos de ser pragmáticos e perceber que a geometria variável é melhor do que a paralisia. Em vez de estarmos todos a aguardar por todos, avancemos com os querem avançar já.

Aceita a ideia de uma política fiscal decidida por maioria qualificada?
Não só aceito como considero essencial. Porque essa ideia de que vamos perder a nossa soberania pelo facto de abdicarmos da regra da unanimidade é desconhecer que a nossa soberania é afectada por aqueles que, por razões geográficas ou económicas, se oferecem como porto de refúgio fiscal, limitando a nossa capacidade de poder jogar com as mesmas armas. Basta ver como são as votações relativamente aos impostos sobre a economia digital, basta ver quem veta a harmonização da base de incidência, para percebermos quem são os países que bloqueiam e os que são bloqueados.

Mas reconhece que a ideia — que aliás defende abertamente — de impostos europeus é, ainda hoje, muito impopular.
Pois é, mas não se pode estar na vida política sem correr riscos. E, sobretudo, não se pode deixar de explicar aos cidadãos quais são os riscos da decisão e da não decisão. A questão é simples. Vamos ter uma redução significativa das contribuições para o Orçamento com a saída do Reino Unido, vamos ter de investir mais na protecção das fronteiras, no combate ao terrorismo, na defesa, na ciência… Ou seja, vamos ter novas despesas e menos receitas. A partir daqui, ou estamos disponíveis para sacrificar a parte do Orçamento afecta às políticas de coesão e à PAC ou temos de encontrar outras fontes de receita. Quais são elas? Ou são as contribuições dos Estados, e isso significa os impostos dos portugueses transferidos para a União Europeia, ou são receitas próprias criadas pela União sobre o conjunto das economias.

É sempre o dinheiro dos contribuintes que está em causa, porque não há outro.
Não há outro. A questão é saber que impostos europeus podemos criar. Uma tributação sobre os gigantes tecnológicos americanos não incide sobre nenhum português e repõe igualdade fiscal, por exemplo entre a Amazon e os distribuidores de livros portugueses.

Outra distorção que, por vezes, é difícil de compreender diz respeito aos desequilíbrios macroeconómicos internos à zona euro. A Alemanha continua a ter o maior excedente comercial do mundo. Há um tratado orçamental que estabelece os limites para os excedentes e os défices e para a sua correcção. Isto é um travão ao crescimento de outros países, dado que o Mercado Interno é o principal destino das suas e das nossas exportações. Porque é que isto acontece? Porque a Alemanha é a Alemanha?
Houve um excesso de voluntarismo político no momento da criação do euro e uma ilusão de [do Presidente francês] François Mitterrand no sentido de que a criação do euro era a contrapartida da Alemanha para a sua unificação, não percebendo que o euro foi o maior bónus à competitividade da economia alemã que a Europa lhe poderia ter oferecido. Se olharmos para os estudos que antecederam a criação do euro, desde o velho Relatório Werner de 1970 até ao Relatório Delors, de 1989, todos previam a necessidade de um orçamento forte da zona euro. Porque, desde a unificação monetária nos Estados Unidos, que as uniões monetárias não esbatem as assimetrias, pelo contrário acentuam-nas. Por isso, são necessários dois factores de correcção: um, que é o Orçamento, e outro, que é a liberdade de circulação das pessoas. O que tem acontecido na zona euro é que essa liberdade de circulação tem um efeito centrípeto, atraindo uma massa de migração geralmente qualificada para as cinco economias que têm ganho prosperidade com a união monetária, em detrimento das economias das periferias. Com um fenómeno interno de brain-draining que é altamente negativo a prazo e que compromete o potencial de crescimento. Em segundo lugar, não temos o outro instrumento orçamental.

O que quer dizer que do seu ponto de vista a “união de transferências” é um mito?
Quando nos dizem que não aceitam uma “união de transferências”, a verdade é que já temos uma “união de transferências”, que é regressiva. A nossa perda de competitividade é o preço do aumento de competitividade do centro, a perda dos nossos recursos humanos é o ganho dos recursos humanos do centro.

Considera então que é preciso reequilibrar esses desequilíbrios, sob pena de condenar a prazo a zona euro?
No mínimo, e espero que o mais tarde possível, a zona euro será mais uma vez confrontada com uma crise como a que vivemos agora. E isso tem um preço que todos pagam — mesmo que uns mais do que outros. Ora, essa consciência e a releitura da doutrina sobre a optimização das uniões monetárias têm ajudado, apesar de tudo, a que países como a Alemanha e até como a Holanda compreendam os avanços que é necessário fazer.

Quando lemos a missiva de AKK em resposta à carta do Presidente Macron, não ficamos com a sensação de que ela compreenda os enormes benefícios que a Alemanha tira da zona euro. Não sou eu que digo, é parte da própria imprensa de referência alemã.
Li aquela carta como a de alguém que se apresentou com a ingenuidade com que [o ex-ministro das Finanças grego] Yannis Varoufakis se apresentou na primeira reunião do Eurogrupo em que participou, e espero que a transição de poder na Alemanha seja suficientemente lenta para que a sabedoria já consolidada pela chanceler Markel nestes muitos anos de exercício de funções se possa transmitir de forma tranquila à sua sucessora. Mas vejo, por outro lado, com uma grande satisfação que o actual ministro das Finanças da Alemanha do SPD esteja a adoptar uma visão muito positiva sobre a dinâmica que deve ter a reforma da zona euro.

A Itália transformou-se num enorme problema para a União Europeia neste momento, por variadíssimas razões. Mas convém recordar que durante anos esteve sozinha a receber imigrantes, a salvá-los do mar e a alojá-los, enquanto os outros olhavam para o outro lado. Também há algumas lições a tirar daqui?
É verdade. O tema da imigração é, porventura, o tema mais complexo e difícil que temos de enfrentar e que terá uma crescente actualidade durante as próximas décadas. E esse é o primeiro dado que a Europa tem de reter. Muitas vezes, este tema é apresentado como um factor conjuntural. Não é. A mobilidade dos seres humanos começou há 50 mil anos. Quando temos dois continentes vizinhos com dinâmicas demográficas opostas e níveis de riquezas brutalmente díspares, não é difícil perceber o que vai acontecer, se não agirmos de uma forma articulada e de longo prazo.

Mas está realmente a fazer-se alguma coisa de novo ou de diferente?
Fui ministro da Administração Interna, entre 2005 e 2007, quando houve uma grande crise migratória em Ceuta e Melilla, e lembro-me como o tema da imigração era completamente secundarizado. Por isso, só posso dizer que as coisas mudaram muito. Hoje, é pacífico para todos que o grande objectivo da política externa europeia nas próximas décadas tem de ser uma nova relação com o continente africano. Mas lembro-me das dificuldades que Portugal teve para organizar a primeira cimeira União Europeia-África, em 2000, e depois, a segunda, em 2007. Hoje, todos compreenderam que é necessária uma nova relação com África. Por isso, digo que sim, que as coisas mudaram muito. Quando me lembro das dificuldades de criação da Frontex e agora assisto a uma discussão normal sobre a criação de uma guarda costeira comum, percebo que as coisas mudaram.

Mas levaram tempo e o problema está longe de ter soluções comuns.
Claro que ainda não chega. E aqui temos de ter uma abordagem mais pragmática, porque estamos a criar fracturas e dificuldades com base numa abordagem normativa de uma realidade excessivamente complexa para ser reduzida a normas e a correr o risco de repetir a propósito da imigração os mesmos erros que cometemos com a gestão da zona euro. Não partilho, obviamente, os valores subjacentes às posições tomadas pelos países do Grupo de Visegrado, nem defendo qualquer tipo de subestimação dos valores que lhes estão subjacentes. Mas esta fractura Leste-Oeste é excessivamente cara para aquilo que estamos a discutir. As quotas que, no esquema de distribuição dos refugiados, são atribuídas a esses países são irrisórias: 4 mil pessoas. É absurdo, do ponto de vista deles, rejeitarem essa quota; e é absurdo, do ponto de vista europeu, aprofundarmos esta fractura Leste-Oeste por causa de 4 mil pessoas. Só a quota suplementar que Portugal disponibilizou para os refugiados é superior a esses 4 mil. E, depois, há o outro lado da medalha. Países como Portugal, que disponibilizaram uma quota superior à que lhe tinha sido destinada, não podem fazer acordos bilaterais com a Hungria, com a Polónia ou a República Checa para poder acolher os que lhe estavam destinados, ao mesmo tempo que a União Europeia ainda não conseguiu sequer colocar em Portugal o número de refugiadoscorrespondente à nossa quota básica.

Mas porquê?
Porque os mecanismos de recolocação ignoram um dado básico: as pessoas não querem vir para a Europa em abstracto, querem vir para a Alemanha em concreto. Estive num campo de refugiados na Grécia a falar com as pessoas e a convidá-las a vir para Portugal e elas diziam-me que querem ir para a Alemanha. Ponto final. A representação que têm da prosperidade europeia é a Alemanha. O que significa que também não é assim que vamos resolver o problema. Desenvolvemos com a Alemanha um programa comum que a Comissão Europeia não aceitou apoiar e que pretendia recolocar em Portugal parte dos refugiados que estavam lá, porque temos oportunidades de inserção e também necessidade. Seja em determinados sectores económicos, seja em capacidade instalada em universidades e politécnicos para a colher mai