Água vai (ser reformada)? Não vai!
Depois de um prolongado processo de maturação (iniciado no consulado de Assunção Cristas), o Governo aprovou a chamada “Reforma do Setor da Água”. As autarquias dividiram-se, ficando de um lado os municípios do litoral a oporem-se ao anunciado aumento do preço da água e, do outro, vários municípios do interior a aplaudir, por esperarem uma redução nesse mesmo preço. A Associação Nacional de Municípios reafirmou a sua discordância com o modelo e verberou o Governo por legislar sobre matéria de competência municipal. Houve ainda acusações que este seria “o primeiro passo para a privatização da água”.
Recorde-se que o quadro institucional vigente foi instituído em 1993 e visava melhorar a qualidade dos serviços prestados através de um novo modelo de governação, a otimização da organização territorial, o aproveitamento dos fundos europeus e a recuperação progressiva dos custos. Em simultâneo foi definida uma estratégia para o sector, estável e consensual, materializada em 3 Planos (1993-1999, 2000-2006 e 2007-2013). O desenho institucional previa a criação de sistemas multimunicipais (estabelecidos por acordo entre o Estado central e as autarquias) para a captação e tratamento das águas e a manutenção de sistemas municipais para a distribuição.
Este modelo teve um grande sucesso. Em duas décadas, Portugal passou de uma situação “terceiro mundista” para indicadores de cobertura e qualidade de serviço de 1ª categoria, sendo apontado como exemplo pela Comissão Europeia e OCDE. Só o tratamento de águas residuais ainda não cobre todo o país.
Mas nos sistemas municipais a otimização da organização territorial progrediu a passo muito lento. A fragmentação destes sistemas está associada a debilidades de gestão e dificuldade em resolver problemas de base como as perdas de água.
Por outro lado, a “holding” pública que agrega os sistemas multimunicipais, a Águas de Portugal (AdP), começou a debater-se com dificuldades financeiras decorrentes daquilo que o presidente da empresa apelidou (com humor duvidoso) “as torres gémeas”: as dívidas de autarquias relativas ao pagamento de serviços e o défice tarifário – a tarifa aplicada não permite recuperar os custos – existente em alguns sistemas, em geral do interior do país.
Para resolver o endividamento de autarquias à AdP foram adotadas medidas de reforço da capacidade de cobrança, inclusive no Orçamento de Estado, e para eliminar o défice tarifário a ministra Dulce Pássaro (2009-2011) deixou pronto o chamado Fundo de Equilíbrio Tarifário, negociado e acordado com a ANMP.
O atual Governo não avançou com a proposta de Fundo de Equilíbrio e decidiu que era necessária uma grande reforma porque a AdP era “insustentável do ponto de vista económico”. E o ministro do Ambiente revelou que a grande prioridade é o “investimento, essencialmente, nas redes em baixa”.
Vejamos então em que consiste a dita reforma.
Parte-se da constatação que os serviços de água e saneamento são de boa qualidade. Identifica-se um problema de sustentabilidade na AdP: o défice tarifário já vai em 600 M€ – era 430 M€ em 2011 – e a dívida dos municípios em 500 milhões – 308 M€ em 2011. Afirma-se que, nada fazendo, as tarifas teriam de aumentar 70%. Diz-se que o sector da Água está excessivamente fragmentado, com mais de 500 entidades gestoras – são 19 no universo AdP. E que há elevadíssimas perdas de água.
A solução avançada é a agregação dos 18 sistemas multimunicipais e da EPAL em 5 sistemas de grande dimensão, com sedes criteriosamente colocadas em municípios do interior. Isso permitirá reduzir os custos operacionais e os custos com pessoal, reduzindo em quase 20% os trabalhadores do conjunto destas empresas!
Com esta simples operação as assimetrias tarifárias serão atenuadas e as tarifas irão baixar imediatamente em ¾ dos municípios, enquanto no outro quarto as tarifas subirão progressivamente ao longo de 5 anos. Serão realizados investimentos superiores a 3,7 mil M€ até 2020 e o valor das tarifas a cobrar aos municípios será reduzido em 4,1 mil M€, até 2045. Não é explicado como se obtêm estes resultados nem é transparente a forma como foram calculados os valores das poupanças anunciadas.
O grande sofisma deste exercício é que as tarifas referidas são as aplicadas aos municípios e não aos consumidores finais e se presumir, erradamente, que as tarifas pagas pelos consumidores no litoral são inferiores às do interior.
Nada é dito sobre como e quando se elimina o défice tarifário nem como são pagas as dívidas dos municípios. E a excessiva fragmentação das entidades gestoras merece apenas a menção de que o financiamento comunitário “deverá promover a agregação de entidades”. As perdas de água serão resolvidas graças à prioridade à reabilitação prevista no novo Plano Estratégico do sector. E pronto, todos os problemas do setor da Água, que é muito mais que a AdP, ficam milagrosamente resolvidos.
Infelizmente os mais de três anos consumidos na preparação desta “reforma” não foram suficientes para definir um modelo que permitisse eliminar as deficiências existentes, quer ao nível da gestão – dando prioridade à integração dos sistemas de distribuição e sua agregação com os sistemas de captação e tratamento – quer ao nível do serviço – investindo no tratamento de águas residuais onde este não existe ou não tem qualidade.
A ser aplicada esta “reforma”, só ficava garantido que os consumidores pagavam mais no litoral e, também, no interior.