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“A situação de miséria de muitas crianças é uma vergonha”

“A situação de miséria de muitas crianças é uma vergonha”

Aos oito anos, assistiu na rua onde morava a uma carga da GNR contra apoiantes do general Humberto Delgado. O antifascismo tornou-se nele um modo de viver a vida (apenas ligeiramente menos antigo do que o sportinguismo, oficializado logo à nascença). Balanço de quase cinco décadas de um percurso político que foi das lutas associativas ao MES e ao otelismo, antes da entrada, em 1986, no Partido Socialista, de que veio a ser secretário-geral. Segunda parte de uma entrevista/conversa de dois convidados com o líder parlamentar do PS, Eduardo Ferro Rodrigues.

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“A situação de miséria de muitas crianças é uma vergonha”

Por Fernanda Freitas e Adelino Gomes

Adelino Gomes (AG) – Valeram a pena estes 50 anos de ativismo político [em que aos 20 anos estava a lutar contra o fascismo, andou pelo MES, votou em Otelo, depois entrou no PS, e hoje olha para esta Europa onde o PASOK é irrelevante, o PSOE está na eminência de sair também da área do poder, e o PSD e o CDS já têm esperanças de voltar a ganhar eleições]?

Ferro Rodrigues (FR) – Acho que sim! Como sou sócio do Sporting desde o dia em que nasci, também sou antifascista mais ou menos desde esse momento! Assisti a coisas demasiadamente para que não fosse antifascista: cargas da GNR, na rua onde morava, a Gonçalves Crespo, no comício do general Delgado – tinha oito anos e lembro-me perfeitamente; a greve de 62 – apesar de ter 12 anos, ia para a cidade universitária; a crise de 68 e as grandes manifestações de rutura nas universidades (americanas, italianas, francesas e só depois nas portuguesas), em que pensávamos que tínhamos uma solução mágica para resolver todos os problemas. Problemas que eram, não apenas, o combate ao regime fascista, mas também ao sistema capitalista, que era aquilo que era posto em causa com a possibilidade de haver uma alternativa que passasse por regimes democráticos mais de base, e por regimes económicos com mais concentração por parte do Estado. Verificou-se que uma parte substancial dessa esperança não era fundada, e como alguns se transformaram em ditadores e aniquilaram milhares de pessoas. Eu não me posso esquecer que nesse período achava simpático o que se estava a passar no Camboja, porque não sabia quais eram as consequências do que se estava a passar naquele momento. Quem tem 18 anos em 68, e tem 24 no 25 de Abril, tem a expectativa normal de que aquilo tudo que leu nos livros se constroi aqui em Portugal com grande facilidade. As coisas não são tão simples. O que quero dizer é que procuro ser realista, procuro aprender com os erros. Agora, os princípios mantêm-se os mesmos – querer mais democracia, mais liberdade, mais iniciativa, mais capacidade de autonomia nacional, tudo isso se mantém. As formas agora são bastante mais difíceis.

AG – Aquilo que pergunto a um homem que desde 1968 esteve nessa luta é: lá em casa, o balanço que faz não é, outra vez, de descrença?

FR – O panorama não é brilhante. Nem dos partidos socialistas em geral, nem das governações ditas progressistas à escala europeia. Porquê? A doutrina de que na globalização é preciso competir, é preciso estar em condições de mercado para nos batermos contra todos, leva a um nivelamento por baixo, a nível dos salários e direitos sociais, cada vez mais em baixo. E isso foi uma consequência que não era previsível, da entrada no euro. Aquando da entrada no euro, e quando as taxas de juro começaram a baixar para todos os países do euro, eu ainda me lembro de ver altos responsáveis do BdP dizerem: mas qual é o problema de Portugal ter um défice externo muito forte em termos de produto? Isso é a mesma coisa que algumas regiões italianas [ou] como nos EUA, também há regiões que são deficitárias e outras… A Europa não teve dirigentes à altura. O que se passa com a Grécia é apenas um exemplo disso. Não duvido que tenha havido exageros e abusos por parte da estatística oficial grega, mas continuar a insistir que a única forma de resolver o problema é castigar, é secar a liquidez dos gregos é, como aconteceu nas vésperas do pedido de auxílio português, um absurdo total! Estas políticas fracassaram do ponto de vista financeiro, económico e social.

AG – Não há uma voz que diga isso em público, na área dos que estão no poder hoje. Vai ser António Costa?

FR – Eu espero que sim! O António Costa já disse isso várias vezes, não é propriamente o discurso que as pessoas esperam de um líder político. Eu, apesar desta função não ser tão preservada como era antes, ainda me posso permitir fazer algumas análises mais teóricas. Mas o António Costa deve dirigir-se sobretudo a chamar e mobilizar o eleitorado.

Fernanda Freitas (FF) – Em que momento é que sente que realmente ajudou o país?

FR – Acho que ajudei o meu país muitas vezes! Mas o momento mais importante para mim é mesmo a criação como algo de dificilmente revogável do Rendimento Mínimo Garantido. Porque mesmo esta fúria contra os programas do Estado, contra a exclusão, que existe por parte deste Governo, e que o faz tentar substituir a solidariedade pública pela caridade privada ou de instituições, não conseguiu até agora (e agora já faltam poucos meses) acabar com as bases disso que foi criado, e que eu guardo com muito orgulho, sem dúvida!

AG – Que outra medida desejava, como cidadão e como político, que fosse tomada assim, com esse peso simbólico e prático?

FR – Há uma coisa, neste momento, que é uma vergonha, a situação de miséria de muitas crianças em Portugal! Aliás, por motivos que têm que ver com a tentativa de rebentar com instrumentos como o Rendimento Mínimo Garantido. Na tentativa de poupar na despesa social, estes senhores criaram mecanismos de tal maneira ferozes que conduziram a que muitas crianças e jovens estejam abaixo do limiar de pobreza. Acho que isso é inaceitável, deve haver um programa de emergência para esses casos! Mas não será comigo, porque eu…

AG – …nem no próximo governo?

FR – O próximo governo tem que ter pessoas com a idade que eu tinha quando estava no governo. Lembro-me sempre quando o Almeida Santos foi candidato a PM, numas eleições que não correram muito bem, em 1985. Eu tinha 35 anos, pensei: “Fantástico, como este tipo já tão idoso está aqui a dar a volta ao país, com esta capacidade toda”… Ora o Almeida Santos nessa altura tinha menos cinco anos do que eu tenho agora.

FF – Falou na saída de pessoal cada vez mais qualificado. Houve há pouquíssimo tempo uma proposta para esse pessoal voltar…

FR – Quer dizer: saíram 400 mil, e vêm 400 !?…

FF – Exatamente! Foi uma das pequeninas farpas de António Costa. Como é que imagina combater este grave problema demográfico?

FR – Com esperança, com confiança, e com a capacidade que o País tenha de ter investimento, e ter crescimento económico, e ter emprego. Isso no quadro da actual política não vai ser garantido. Por consequência, o que não faz sentido é um governo que ao mesmo tempo corta essas possibilidades, estar a chamar algumas centenas de pessoas para regressarem. No contexto normal da taxa de natalidade portuguesa, cujo indicador de fertilidade é muito baixo, o normal seria que Portugal precisasse de mais gente imigrada. Até com alguma qualificação. O que aconteceu foi exatamente o contrário. Ora, isso não se resolve com decretos, resolve-se com prática política, que consiga recriar um ambiente de confiança e de investimento em Portugal. É tudo muito difícil? Mas temos que nos bater até ao fim mesmo pelas coisas mais difíceis!

FF –Que Portugal quer deixar aos seus netos?

FR – Há duas coisas que me deixam um bocadinho irritado na conversa política normal: aqueles que falam no país que querem deixar aos filhos ou aos netos, e aqueles que falam muito no cumprimento fiscal. Normalmente, os primeiros são extremamente individualistas, estão- se um bocadinho nas tintas para o mundo que vão deixar; e os segundos, muitas vezes, fogem ao fisco…. Quanto melhor se fizer agora, melhor será para quem vem a seguir, mas as gerações que vêm a seguir têm obrigação de construir! Esta história dos investimentos públicos que para alguns foram investimentos ruinosos: esses investimentos, ditos ruinosos, vão servir às gerações futuras, para os filhos, os netos, bisnetos poderem transformar Portugal num Pais muito mais central, na globalização (se é que a globalização não estoira com uma guerra qualquer…). Temos hoje portos, aeroportos, auto-estradas como não tínhamos. Embora não estejam a ser aproveitadas agora, podem ser daqui a 20 anos – um património extraordinário para que Portugal passe a estar no centro do mundo globalizado, no qual o Atlântico vai ter outra importância, com os acordos que se preveem entre a Europa e os EUA, a abertura ou o alargamento do Canal do Panamá, e a circulação marítima que vai haver. Se pensarmos bem o presente, deixamos sempre coisas para o futuro que valem a pena. Sem essa ladainha dos filhos e dos netos… Eu falei dos netos por vontade de estar com eles!

FF –Acha que eles vão ficar em Portugal?

FR – Espero que sim.Mas o maior problema não é esse. É poderem optar entre estarem em Portugal ou trabalharem noutro país qualquer! O que não é admissível é terem que emigrar porque não conseguem aqui encontrar ou criar emprego! As pessoas têm que perceber, e os jovens, nomeadamente, que não podem ficar à espera que os empregos lhes apareçam, têm que criar empregos para outros.

AG – Inspirado na quadra: para esse Portugal do futuro, é preciso outro 25 de Abril?

FR – Não estamos numa situação tão limite como estávamos. Primeiro, a guerra colonial, que foi o elemento determinante; em segundo lugar, a falta de democracia, de liberdade. Em sentido abstracto, o que é preciso é que as pessoas voltem a ter confiança, esperança. Para isso não é preciso movimentos militares. É preciso que haja capacidade de construir!

AG – Serão os partidos capazes de o conseguir?

FR – Como disse há bocado, preocupa-me bastante que a política se transforme numa profissão, em que os políticos apareçam apenas para gerir uma realidade cujas políticas são relativamente imutáveis, em que o quadro de base seja o quadro da reforma, sejam os princípios que foram definidos pelo consenso de Washington – privatizar, liberalizar, flexibilizar. Para isso não contam comigo! Por isso falei dos netos, da família: há coisas muito interessantes para fazer. A leitura, por exemplo: eu lia muito, mas dediquei muitos anos a reuniões por causa da política. A minha ambição é contribuir para que o país avance, haja alternativas, mas não ponho de parte, neste momento de reflexão final, que me dedique a aspectos mais familiares e pessoais! Depende. Tentarei contribuir para que as coisas corram bem, mas não dependem só de nós! ^

AGRADECIMENTO

Agradecemos a Fernanda Freitas e Adelino Gomes terem aceitado o convite para fazerem esta entrevista e o terem encarado como mais um desafio a juntar a tantos outros das suas longas e bem-sucedidas carreiras de jornalistas.