“A Expo foi um grande momento de auto-estima para o país. São raros”
(Entrevista à revista Ipsilon)
Há 20 anos, dois dias antes da abertura da Exposição Mundial de Lisboa, conhecida como Expo-98, António Costa, então com a tutela do evento no Governo de António Guterres, dava-nos uma entrevista já sobre o pós-Expo, antecipando o que tinha de acontecer ali passados os 132 dias de espectáculos e de comemorações dos 500 anos da chegada de Vasco da Gama à Índia. Sete meses antes, no final de Novembro de 1997, assumia, aos 36 anos, o cargo de ministro dos Assuntos Parlamentares, na sequência da demissão de António Vitorino, de quem era secreário de Estado, ficando responsável por aquela que é vista como a primeira grande celebração do Portugal democrático e moderno.
Na sua primeira visita à futura Expo depois da nomeação, pensou, algo desesperado, que as obras pareciam muito atrasadas, dentro e fora do recinto — da CRIL (Circular Regional Interior de Lisboa) aos vários pavilhões temáticos: “Olha, a carreira tão esperançosa que eu tinha vai já morrer!” Foi então que ouviu a voz feminina da comissária do Pavilhão de Portugal, Simonetta Luz Afonso, “num bom vernáculo”, a dirigir-se à sua equipa. “Foi o primeiro momento em que eu disse: ‘Não… isto faz-se?’”
Correu quase tudo bem no seu primeiro cargo como ministro — o país adorou a Expo-98 e o mundo ficou com uma lição para futuras operações semelhantes. Mas tendo em conta que começou a missão com um único cabelo branco, um fio de estimação, e acabou com vários, podemos dizer que António Costa ganhou aqui um lastro, político e mediático, na sua relação com a cidade que acabaria por se reflectir dez anos mais tarde na candidatura à Câmara de Lisboa. Nesta entrevista sobre a Expo-98, que não é política, conforme o combinado, conseguimos falar também sobre a gentrificação das cidades, o turismo e a habitação, a agitação no sector da cultura e a recente polémica à volta do Museu da Descoberta.
O que é que significou a Expo-98 naquele momento para o país?
Acho que foi o primeiro grande momento em que o país sentiu que se tinha modernizado. Que era um país cosmopolita, aberto, capaz de realizar grandes transformações. Culminou todo aquele ciclo da revolução, da liberdade do 25 de Abril, da estabilização democrática, dos primeiros anos da Europa. Finalmente, tivemos um momento em que o país se pôde celebrar, encontrar pela primeira vez o mundo e ver o mundo a reconhecê-lo.
Lembro-me de entrarmos aqui e ficarmos surpreendidos com a qualidade do espaço público, com a limpeza, com as coisas a funcionarem bem. A Expo foi um momento de grande auto-estima para o país, e são raros.
A surpresa foi as coisas funcionarem? Houve um prazo, as coisas foram feitas e foi inaugurado a tempo…
Sim, isso foi a primeira fase: “Não vai ser possível, as coisas não vão estar prontas a tempo.” A grande surpresa foi estarem prontas. Nos primeiros dias vinha muito pouca gente, porque as pessoas achavam que não valia a pena vir logo no início, que faltariam imensas coisas.
Mas depois, quando vieram, não foi só o facto de estar pronto, mas a surpresa de haver um espaço como este em Portugal: eram edifícios que não tínhamos, era um espaço público que não tínhamos, era a qualidade do serviço, desde a entrada à circulação. A Expo foi muito boa, mas também muito inspiradora, e acho que o paradigma de espaço público que temos no resto do país foi muito marcado por aquilo que foi feito aqui.
“Utopia” foi uma das palavras que usou nessa altura para definir aquilo que a Expo tinha conseguido fazer no final do século XX. Esse sonho de criar um espaço novo conseguiu alastrar-se às restantes cidades? Ainda hoje se fala do caos urbanístico das cidades portuguesas…
A construção de uma cidade é uma coisa muito lenta. A grande dúvida que existia era o que é que aconteceria quando a Expo acabasse, no dia 1 de Outubro. Ia ser uma nova Sevilha, uma nova ilha da Cartuxa, ou ia mesmo cumprir-se o projecto de cidade que aqui está? Hoje essa dúvida é absurda, muitas pessoas até criticam a excessiva densidade do Parque das Nações, o ter havido, porventura, construção a mais.
Veja quanto tempo levou a ideia da recuperação da frente ribeirinha, que surge pela primeira vez na candidatura de Jorge Sampaio à Câmara em 1989. Levou quase nove anos até se concretizar a Expo. E a junção da Expo ao resto da cidade só agora está a acontecer.
A Expo está a conseguir coser-se com Xabregas, Marvila e Moscavide? Esse desejo de que nos falava há 20 anos vê-o finalmente a acontecer agora?
Finalmente está a acontecer, mas [o processo] não está completo. Já chegou até Santa Apolónia, ao Terminal de Cruzeiros. Há agora finalmente uma intervenção muito grande na zona do antigo Braço de Prata. Marvila e o Beato estão-se a reinventar com a dinâmica das galerias e a perspectiva de instalação do Hub Criativo na antiga Manutenção Militar.
O alastramento ao resto das cidades com o Programa Polis, manifestamente inspirado na experiência da Expo, ajudou muito a que as cidades ganhassem nova vida. Ainda há pouco tempo estive três dias de férias em Viana do Castelo, que é hoje uma cidade completamente diferente do que era há 20 anos.
“Não podemos ter os centros das cidades como disneylândias para adultos”
O Parque das Nações, o último grande bocado da cidade de Lisboa a ser construído de raiz, surgiu numa altura em que o centro da capital estava vazio, lembra António Costa, e em que as câmaras municipais ainda estavam concentradas na erradicação das barracas. “Hoje é impossível conseguir uma casa no centro de Lisboa”, admite o primeiro-ministro, ressalvando que é preciso manter a diversidade das cidades, porque elas não resultam só da reabilitação do património físico como “das vivências dadas pelas pessoas que lá habitam”.
O turismo veio para ficar em Lisboa e no Porto e não é proibindo, como se fez com o congelamento das rendas, que se encontrarão soluções, defende. Ao falar da sua nova política para a habitação centrada na reabilitação, António Costa mostra-se muito focado em criar um arrendamento acessível para a classe média, para os jovens que estão a começar a sua vida independente, a geração que deu título à moção política Geração 20/30, que levará agora ao 22.º Congresso do PS.
A olharmos para a cidade construída no antigo recinto da Expo, da janela do teleférico, percebemos que em 20 anos ele se tornou um dos centros do centro de Lisboa, e continua tão atraente nos seus espaços públicos quanto gentrificada. Desconsolado, o primeiro-ministro comenta a tenda colocada sob a pala do Pavilhão de Portugal de Álvaro Siza, o símbolo da Expo-98, para a final da Eurovisão: “Aquilo é horrível. É inacreditável.”
Acredita que os instrumentos de apoio à habitação anunciados pelo Governo, como o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado, vão atenuar a gentrificação dos centros históricos?
É esse o objectivo. Quando demos na Câmara de Lisboa finalmente prioridade à reabilitação, o momento era de enorme crise de investimento interno. Por causa disso, a reabilitação foi muito feita com base na atracção dos estrangeiros que vieram residir para Portugal ou financiada com base em projectos de natureza turística. Isso criou um grande desequilíbrio, que foi muito rápido, porque passámos da cidade donut, completamente vazia no centro, para a cidade excessivamente pressionada no seu centro. Preencheram-se os imensos vazios que existiam, mas pressionando aqueles que resistiram a abandonar o centro.
Aquilo que tem atraído as pessoas para o centro de cidades como Lisboa e o Porto é a autenticidade, e essa não resulta só da conservação do património físico, mas das vivências dadas pelas pessoas que lá habitam. Alfama, se ficar integralmente preservada mas despovoada da sua própria população, será certamente um parque turístico, mas deixará de ser um bairro com vida própria, que é ao que lhe dá a sua característica. Não podemos ter os centros das cidades como disneylândias para adultos. Temos de ter espaços que sejam perfeitamente vividos, ocupados, habitados e renovados.
Há 20 anos era possível intuir, ou ainda mais recentemente quando foi presidente da Câmara, que o problema da habitação ia tornar-se tão central para um primeiro-ministro em 2018? Como é que se deu a tempestade perfeita? Foi o turismo?
Quando cheguei à Câmara em 2007, o que é que as pessoas todas diziam? O centro está completamente vazio, as pessoas estão a abandonar os bairros tradicionais: a Baixa está deserta, o Chiado está deserto, na Mouraria ninguém entra, é necessário fazer um grande esforço de reabilitação.
Com a crise em 2008, nem o Estado, nem as autarquias, nem os privados tinham capacidade para intervir, e foi nesse vazio que simultaneamente Lisboa começou a tornar-se num spot turístico muito interessante. A promoção da cidade foi boa, a abertura das carreiras low cost deu um novo conhecimento e nós conseguimos começar a dinamizar a vida e o espaço público na cidade — isso começou a atrair novas pessoas.
Num muito curto espaço de tempo, um conjunto de fenómenos — como os vistos gold, o mecanismo fiscal para os não-residentes ou a imagem internacional de segurança que a cidade projectou — acelerou muito este movimento. Foi um salto. Mas mais grave do que o impacto do turismo foi a lei do arrendamento. Porque passámos de um regime hiper-proteccionista, com inquilinos com décadas de arrendamentos congelados, com muita dificuldade do senhorio em terminar o contrato, para uma total liberalização.
Mas independentemente da habitação, estamos a assistir ao início do boom turístico em Lisboa e no Porto?
Não acho que esteja no início da intensidade, mas vamos ter com certeza ainda um crescimento, e não tenho dúvidas de que será duradouro. Não acompanho a ideia de que em Lisboa e no Porto [o turismo] é muito conjuntural, de que são modas. Primeiro, porque o turismo de cidade não é propriamente alternativo ao turismo de sol e praia que foi atingido com as ameaças de segurança. Em segundo lugar, hoje é mais fácil viajar.
Os impactos nas cidades e os problemas que estamos a discutir estão portanto no início?
Bom, eu já não sou presidente da Câmara e não me coloque outra vez num local onde fui feliz. A excepção aqui é a Expo.
A maioria dos portugueses vive nas cidades.
Acho que nós não devemos ter a tentação fácil, que historicamente sempre tivemos, de quando há um desequilíbrio reagirmos pela proibição. O Salazar congelou rendas durante décadas e a Revolução generalizou esse congelamento. Depois a resposta foi a compra de casa própria e o excesso de endividamento. A seguir proibiu-se o endividamento.
O turismo é muito importante para as cidades e para o conjunto da economia do país. Não só para a economia do consumo, também para a economia da produção, da agricultura à indústria da construção. Grande parte do investimento estrangeiro que hoje conseguimos atrair deve-se à boa imagem que o turista que vem a Portugal transmite do país.
O que temos de fazer é complementar a oferta, para podermos manter a diversidade da procura na cidade. Se esgotarmos a oferta que temos, ficamos simplesmente só com turismo, com gentrificação. Por isso é que o conceito de habitação de renda acessível é muito importante, porque hoje o desafio que se coloca já não é só em relação às pessoas que têm direito à habitação social, fundamental para responder às 26 mil famílias que hoje vivem em condições indignas no país, mas também lançar um novo projecto mais focado na classe média.
Hoje é impossível conseguir uma casa no centro de Lisboa. Essa ilusão liberal de que liberalizando o arrendamento se liberalizava a oferta, e de que liberalizando a oferta os preços baixavam e a procura se tornava acessível, fracassou completamente. É óbvio que temos de complementar isso com arrendamento acessível.
Os mecanismos que agora apresentámos, tal como os que estão a ser estudados por várias câmaras, como a do Porto e a de Lisboa, são complementares à mera oferta de mercado. Não ignoram as regras do mercado, têm um referencial de renda acessível em relação ao que é praticado em cada zona — o preço em Benfica não será o mesmo que o preço em Belém ou no Parque das Nações —, mas não deve corresponder a um esforço superior a um terço do rendimento de cada agregado familiar.
Os instrumentos de apoio estão centrados na reabilitação. Como é que se consegue que os subfundos, que precisam de ser competitivos, não façam só fachadismo, que é uma das críticas ao que se tem feito nos centros históricos? Há alguma maneira de o Estado disseminar boas práticas?
Pela experiência que fui tendo nos bairros tradicionais, ela não pode ser só fachadismo, mas também não pode ser só manter o pré-existente. Uma das razões pelas quais grande parte dessas casas tem sido reorientada para o turismo é o facto de a preservação do existente tornar a habitação disfuncional para aquilo que é a exigência normal de qualquer família moderna. Tive várias situações em que as pessoas que tinham sido deslocadas para se fazer a reabilitação mostravam depois uma forte resistência a regressar às casas quando as obras estavam concluídas. Muitas têm fracções com dimensões absolutamente insalubres.
Mas entre o que eu posso achar e o que o primeiro-ministro pode achar, como é que as boas práticas se difundem?
Aí temos de respeitar a opinião técnica e os políticos têm de ter essa humildade. Mas é também importante que os técnicos testem as suas convicções e aquilo que aprenderam sabendo ouvir as pessoas que utilizam as casas. Num bairro com população muito envelhecida, querer preservar à força soluções com vários desníveis, que obrigam as pessoas a subirem e a descerem degraus quando têm mobilidade mais reduzida, não é prestar um bom serviço. É facilitar que essas pessoas aceitem rapidamente uma proposta para ir viver para outro sítio, longe do seu centro de vida. Esse espaço que fica livre só é mesmo muito engraçado para ser utilizado episodicamente por turistas ou por jovens estudantes que querem uma experiência muito typical no centro de Lisboa. Temos de encontrar aqui uma boa complementaridade.
Mas vai haver um manual de boas práticas para essa reabilitação associada à concessão de fundos ou não?
Acho que uma das funções do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana é definir boas regras e boas práticas em matéria de reabilitação.
“Numa legislatura não creio que seja possível alcançar 1% para a Cultura no OE”
Com um pai escritor e uma mãe jornalista (que, aliás, acabou de lançar um livro sobre o Maio de 68 em França, com conversas com Jean-Luc Godard e Jacques Brel), António Costa é um primeiro-ministro que criou muitas expectativas entre os artistas e os criadores quando chegou ao poder. Mas o momento da cultura, ouviu-se dizer nos últimos meses de contestação, parece ainda não ter chegado. Costa sabe que há “uma enorme ansiedade”, apontando que um aumento de 40% nos apoios em relação ao quadriénio anterior foi percebido como um corte. Mostrando os seus pergaminhos, cita Sérgio Godinho, rematando que 1% do Orçamento do Estado (OE) para a Cultura “é um caminho muito ambicioso”, mas que é um objectivo que se faz por etapas.
Entramos agora na última parte desta entrevista, dedicada ao Ministério da Cultura: depois da agitação dos últimos meses, como é que está a correr o diálogo com o sector?
Para já, há um ponto bom, que é haver diálogo. Estamos a criar condições para estabilizar o modelo [de apoio às artes], para depois o podermos analisar.
Em Portugal, quando surgem os novos modelos, não temos uma grande cultura de participação atempada nos processos de discussão pública. Acaba-se por tratar dos problemas mais depois da aplicação do que no momento na concepção. Porventura, se tivesse havido mais debate, maior atenção, maiores contributos na fase da concepção do modelo, talvez muitos destes problemas pudessem ter sido evitados.
Há outros problemas absolutamente inevitáveis, que têm a ver com a avaliação subjectiva do júri, e essa é sempre irredutível. Nós os dois, muito provavelmente, faríamos avaliações distintas e consideraríamos um projecto melhor do que outro. Mas têm de existir regras comummente aceites por todos como válidas para apoiar este ou aquele.
Voltando um bocadinho às origens, diríamos que é um primeiro-ministro cheio de pergaminhos do lado da mãe e do pai, cheio de capital cultural, como se costuma dizer. Acha que isso contribui de alguma forma para que existam mais expectativas em relação ao Antonio Costa como primeiro-ministro? Como se ouviu nestes últimos meses, ainda não chegou o momento da Cultura?
Há uma canção do Sérgio Godinho, logo a seguir ao 25 de Abril, em que ele diz que a sede de uma espera só se estanca na torrente. Nós temos de perceber bem o momento em que vivemos. Estamos num país que viveu uma crise profunda e dramática, não só do ponto de vista da carência económica e financeira, mas sobretudo da desesperança das pessoas, de acreditar que podia haver futuro. Isso aconteceu em todos os sectores da sociedade e também, até particularmente, se quiser, no sector da cultura.
De repente, o país tem a notícia de que as coisas estão a melhorar — voltou a crescer, o défice está controlado, a dívida está a diminuir. É como se se tivesse retirado a tampa de uma panela de pressão. Tendo havido um aumento de 40% das verbas atribuídas a este concurso plurianual relativamente às do quadriénio anterior, as pessoas têm a sensação de que não só não houve mais, como, pelo contrário, têm a ideia de que houve cortes. Esta percepção resulta de haver uma enorme ansiedade.
E como é que se gerem essas tensões?
Como se gere a abertura da panela de pressão. Vai-se libertando a pressão com a válvula. Mas tem de se falar com as pessoas, sobretudo tem de se ter um pacto de confiança com elas. As pessoas têm de sentir que este aumento de 40% não repõe a totalidade do que é necessário, mas é uma etapa de um caminho que vai ter continuidade. Para o ano haverá nova etapa e no ano seguinte outra. Se não for assim, a frustração é imensa. E seria muito maior se quiséssemos simplesmente tirar a tampa da panela de pressão, porque corríamos um seríssimo risco de voltar a introduzir cortes.
Tem a expectativa de alguma vez enquanto primeiro-ministro chegar ao 1% do Orçamento de Estado para a Cultura?
É um caminho muito ambicioso, mas temos de ter essa trajectória. Não creio que numa legislatura seja possível alcançar esse objectivo, a não ser que as condições se revelem absolutamente excepcionais.
Já respondeu que não será nesta legislatura, mas tem a expectativa?
Detesto assumir compromissos sem ter a certeza de que os posso assumir. Sei que esse é o objectivo que queremos alcançar, ainda não lhe posso dizer quando.
Só lhe perguntei se tinha a expectativa, não lhe perguntei quando…
E eu dir-lhe-ia assim: “Teria um imenso gosto [risos].”
“É preciso descolonizar os Descobrimentos”
Talvez fosse mais verdadeiro, porque mais próximo de conseguir fazer a síntese do pensamento de António Costa, termos usado a frase que se segue para titular este bloco da entrevista dedicado ao polémico projecto do Museu da Descoberta: “Não temos de ter uma relação complexada com os Descobrimentos.” Mas optámos pelo que encima estas perguntas porque não deixa de ser uma estreia um primeiro-ministro português dizer que “é preciso descolonizar os Descobrimentos”, afirmando-se como um político que demonstra estar consciente do pensamento crítico que foi sendo produzido nas últimas décadas sobre as experiências coloniais.
Já com as câmaras desligadas no exterior do Pavilhão do Conhecimento, onde esta entrevista foi feita no dia 11, António Costa confessou que gostaria de ser ele a fazer o Museu da Descoberta. “Seria um bom projecto para a minha reforma, que está muito longe de acontecer”, ri-se. Um museu sobre o encontro com os outros, sobre o qual chegou a ter “muitas” discussões na Câmara de Lisboa. E sobre o seu lado negativo, como a escravatura, o que é que é preciso dizer? “Também faz parte da nossa História e não pode, não tem como e não deve ser ignorada.”
Ao contrário da Expo de Sevilha, a Expo ’98 não foi directamente sobre os Descobrimentos, mas sobre os oceanos e o futuro. Também não havia nenhum pavilhão dedicado a Vasco da Gama, na altura em que se comemoravam os 500 anos da descoberta do Caminho Marítimo para a Índia. Como vê toda esta polémica à volta do futuro Museu da Descoberta?
São duas questões. A Expo não teve nenhum pavilhão dedicado ao Vasco da Gama, mas não escondeu o Vasco da Gama. Acho que teve sempre a inteligência de apresentar essa narrativa da navegação como uma narrativa de encontro. Havia aquele filme lindíssimo de animação no Pavilhão de Portugal em que a descoberta, aliás, era feita pelo outro lado, era o japonês que descobria o ocidental que lá ia pela primeira vez.
Mas acho que há aqui várias coisas. Nós não devemos ter o complexo, mas o orgulho de conseguir tratar em Portugal aquele que foi o período da História em que indiscutivelmente demos o nosso maior contributo enquanto nação para o mundo. Esse processo histórico prolonga-se ainda hoje de cada vez que a língua portuguesa é falada e utilizada, como uma grande ponte que se estende do Brasil a Timor. Descobrimos imenso da nossa língua de cada vez que ouvimos uma telenovela brasileira.
Acha que é preciso ter cuidado com os termos “descobertas” e “descobrimentos”, como defendem alguns historiadores?
Nós temos de descolonizar a expressão Descobrimentos. O que consta do programa da Câmara Municipal de Lisboa não é nenhum Museu das Descobertas. É o Museu da Descoberta.
Por que é que é preciso descolonizar a palavra “descobrimentos”?
Porque esse processo histórico não foi unilateral — descobrimo-nos uns aos outros. Isso era muito bem mostrado nesse filme do Pavilhão de Portugal.
Acha que a sua origem goesa lhe dá uma sensibilidade acrescida em relação ao tema, no sentido em que a chegada do Gama ao Índico também pode contar outras histórias menos gloriosas?
Não sei se me dá uma sensibilidade particular, mas coloca-me seguramente como um dos maiores beneficiários dessa viagem [risos]. Porque, com grande probabilidade, se o Gama não tivesse ido à Índia o meu pai não tinha vindo estudar para Lisboa e, não tendo vindo estudar para Lisboa, não tinha encontrado a minha mãe e eu muito provavelmente não estava aqui.
Sente-se a viver entre duas culturas?
A narrativa que eu acho que é importante para nós e para quem nos visita é, em primeiro lugar, o conjunto de descobertas científicas acumulado que permitiu as navegações. Essa dimensão permitiu que não fosse uma aventura, mas um projecto devidamente organizado e pensado com base no conhecimento. Depois, aquilo que se descobriu na própria viagem: o que se descobriu quando chegámos lá e o que descobriram os que nós encontrámos lá. A humanidade [acumulou] conhecimentos de flora, de fauna, de geografia, da astronomia, dos povos, das línguas, como nunca tinha acontecido até então.
Quando digo que quero descolonizar é porque acho que não faz sentido hoje fazer um museu que seja a versão do século XXI da Exposição do Mundo Português. Mas acho que não temos de ter uma relação complexada, quer com aquilo que de positivo trouxeram, quer com os momentos horríveis que houve, como a escravatura, como os massacres, como todo o período da Guerra Colonial.
Talvez eu tenha uma visão atípica, mas choca-me tanto alguma visão complexada sobre esse processo de colonização como a resistência ao Acordo Ortográfico. Como se fôssemos proprietários exclusivos de uma língua que hoje felizmente é partilhada por 280 milhões de pessoas.
Acha que essa reflexão sobre a escravatura, que no fundo é o subtexto que está nas preocupações de alguns historiadores, faz parte do mesmo museu?
Eu por acaso tive o cuidado de ler o programa do [presidente da Câmara de Lisboa] Fernando Medina e ele até tem expressamente na ideia do dito museu uma referência à escravatura. Acho que há um enorme equívoco nesse debate.
Mas esse debate está por aí, com algumas variantes…
Sim, está por aí. Muitos estrangeiros que vem cá perguntam: “Sobre as vossas navegações o que é que podemos ver?”. “Bom, está ali o Padrão dos Descobrimentos”… É pouco. É como ir aos EUA e não haver um museu do espaço. É estranho.
Por isso, é preciso criar um Museu dos Descobrimentos?
Se fosse eu a baptizar, diria “da Descoberta”.
O singular aponta para outras coisas?
A descoberta contém tudo. Quer aquilo que nós descobrimos, quer aquilo que os outros descobriram em nós. Mas não fazia sentido para um país que teve sempre uma visão universalista da sua própria História ter uma leitura passadista, anacrónica, como se fosse uma Exposição do Mundo Português no século XXI. É muito engraçado ouvir os brasileiros…
… os brasileiros estão a discutir o Museu da Escravatura no Rio de Janeiro…
A escravatura foi um momento da construção do Brasil, é impossível ser ignorada. Como também faz parte da nossa História e não pode, não tem como e não deve ser ignorada. É também relativamente estranha a forma como olhamos para o fenómeno das guerras coloniais. Temos de ter uma visão descomplexada da nossa História como os outros tendem a ter.
Como é que as pessoas definem hoje a sua identidade: fazem-no mais através das cidades em que vivem ou dos países a que pertencem? É um lisboeta do Príncipe Real [onde passou a infância e adolescência]? Há pouco estava a tentar perguntar se se sentia a viver entre duas culturas…
Depende dos países. Acho que em Portugal ainda nos definimos mais pelo país do que pelas cidades. As migrações internas são todas muito recentes.
Mas estava a falar de si, do António Costa…
Se me pergunta se me sinto mais lisboeta, sim… Vivi aqui toda a vida, fui oito anos presidente da câmara. Mas isso não faz com que não me sinta português quando estou em Viana do Castelo, nas festas da Senhora da Agonia…
Mas sentiu-se alguma vez a viver entre duas culturas, a do seu pai, mais ligada a Goa, e a da sua mãe, mais portuguesa?
O meu pai vem de uma família brâmane católica, que é outra originalidade goesa. Gostava de fumar bidis, gostava da comida indiana, mas era verdadeiramente ocidental. Muito dessas famílias católicas, desse extracto social, não se sentiam indianas na sua existência. Isso faz parte da diversidade da própria Índia.