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A Europa que se afunda

A Europa que se afunda

O cartão de visita da sua curta vida de 19 anos podia ser este: Doah, refugiada síria a viver no Egipto. Apaixonada por Bassem. A sofrer o afastamento de uma comunidade egípcia que inicialmente a tinha, a ela e à sua família, acolhido bem. Em 2015, Doah acreditava que a Europa era um lugar com futuro, um espaço de promessa para uma nova vida.

Opinião de:

A Europa que se afunda

O jovem casal decide arriscar. Despedem-se da família, reúnem as poupanças e levam-nas de mão estendida aos contrabandistas. Viajam de autocarro até uma praia e metem-se num barco de pesca. Repleto. Cerca de 500 pessoas: sírios, palestinianos, africanos, muçulmanos e cristãos. Famílias inteiras. Perto de 100 crianças. Era agosto. O mar foi dando tréguas. Mas ao segundo dia muitos deles enjoavam. Ao terceiro dia, Doah teve uma premonição: não iam conseguir chegar a terra. Ao quarto dia, os passageiros, agitados, perguntavam-se: quando chegamos? Disseram-lhes: “Mais 16 horas e chegamos a Itália”. Viram chegar um barco. Pequeno. Não poderiam caber todos. Recusam-se a fazer o transbordo. Os novos contrabandistas começaram a furar o barco de Doah enquanto gritavam: “Que os peixes comam a vossa carne”. E enquanto o barco se vira e se afunda, os homens riem-se. Doaa, sem saber nadar, agarra-se a uma boia de salvação. Bassem vai resistindo a seu lado. Em redor deles, cadáveres. Algumas pessoas, vivas, pedem ajuda. Com o passar das horas, muitos perdem a esperança e tirando os coletes de salvação, deixam-se ir com as ondas. Um homem aproxima-se com um bebé empoleirado nos ombros, Malek de 18 meses. Sentindo ficar sem forças, o homem entrega Malek a Doah. Agora eram três. Bassem começa a dar sinais de fraqueza. “Desculpa ter-te colocado nesta situação. Amo-te muito” e deixou-se ir com a água. Mais tarde nesse mesmo dia uma mãe chegou junto de Doah com uma bebé de 18 meses, Masa. “Aceita esta criança. Eu não vou sobreviver.”

A rapariga de 19 anos, que tinha medo da água viu-se responsável por duas crianças. Tinham fome, sede e estavam agitadas. Doah cantou, leu partes do Corão. Os corpos iam ficando pretos e inchados à sua volta. Ao quarto dia, uma mulher entregou-lhe outra criança, de 4 anos. A mãe afogou-se. O bebé não aguentou e morreu pouco depois.

Passadas algumas horas, Doah avista um barco da marinha mercante. Berrou o mais que pode até que as luzes do barco acabaram por dar com ela, no meio da escuridão. Lançaram corda, agarraram-na com as duas crianças e um helicóptero grego levou-os para a Ilha de Creta. Malek não sobreviveu. Apenas 11 das 500 pessoas sobreviveram naquele dia de agosto no meio do Mediterrâneo. Nunca houve nenhum inquérito. E depois o ciclo de notícias fechou-se sobre a tragédia.

Doah recebeu no ano seguinte o prémio de Coragem atribuído pela Academia de Atenas. Esta história contada por Melissa Fleming, a conselheira do secretário geral da ONU, na sua Ted Talk em 2015, fica connosco e cola-se à pele de humanidade que ainda vamos tendo.

Em 2017, continuam a existir histórias de sobrevivência como a de Doah. Nos primeiros seis meses de 2017, chegaram 72 mil refugiados às costas de Itália e da Grécia. Mas também há milhares de cadáveres que vão enchendo o cemitério do mar Mediterrâneo.

No dia 21 de junho o Parlamento Europeu realizou a Conferência de Alto Nível sobre gestão de migrações. Uma sala repleta, um fórum grego de discussão onde se falou do muito que estava feito e do outro tanto que faltava fazer.

Em grande parte, os egoísmos nacionais têm prevalecido. Por cima dos tratados europeus, por cima do respeito pelos direitos humanos, por cima da proteção que se deve conferir aos cidadãos. A solidariedade, que é um valor fundamental, tem sido usada como uma opção, quando deveria ser o cimento da ´construção europeia.

Grécia e Itália reclamaram mais cooperação e apoio. A Hungria, a Eslováquia e a Polónia reafirmaram o não cumprimento do sistema de quotas obrigatório na recolocação de refugiados. A União Europeia ameaçou com multas. A Dinamarca ou a Áustria continuam a defender o prolongamento dos controlos fronteiriços provisórios, que cada vez mais alguns querem como definitivos. E percebemos rapidamente que a Europa que fizemos ontem, de estrada aberta, hoje é, na questão da imigração, um puzzle a construir-se com arame farpado.

É verdade que outros vão cumprindo as quotas exigidas. A Alemanha, a França, a Holanda, a Finlândia são os que acolhem o maior número de refugiados na Europa. Portugal é o quinto país em cumprimento e até aos primeiros meses de 2017 tinha já acolhido 1376 migrantes vindos de 10 países diferentes que se espalharam por 92 municípios portugueses. Estamos dispostos a acolher mais, comprometemo-nos com isso. Mas a burocracia europeia está a tolher o espírito solidário que o Governo português tem demonstrado desde o início.

No dia 21 de Junho os cidadãos e instituições que debatiam a gestão das migrações na Sala do Parlamento Europeu deixaram um longo caderno de encargos: utilizar a diretiva das vítimas de crime para os migrantes sem papéis; garantir procedimentos individuais para que as crianças desacompanhadas possam sair dos campos; dar instrumentos aos migrantes para que se transformem em cidadãos; apoiar a Grécia e a Itália no apoio que confere aos refugiados com comida, abrigos e cuidados de saúde; garantir partilha equilibrada de responsabilidades e de migrantes; criar rotas legais e seguras; atacar quem organiza o tráfico; garantir cooperação com países terceiros; investir mais nos países que acolhem refugiados; garantir uma estratégia económica para África, especialmente para a Líbia, país de trânsito na rota das migrações onde os refugiados são vendidos como escravos.

Podemos voltar a fazer conferências de Alto Nível em Bruxelas. Podemos assumir que a Europa ainda consegue encontrar dentro de si pontos em comum que refletem humanidade. O que a Europa não pode continuar a fazer é persistir no erro de pagar para que outros resolvam um problema que é de todos. Se não arrepiar caminho, os seus cidadãos terão de continuar de cabeça baixa, envergonhados por ela não conseguir defender valores que deveriam ser universais.