A dignidade da autonomia
Há pouco mais dum século, o tempo médio de vida do ser humano andava pelos 40 anos. Hoje, mais do que duplicamos esse valor nos países “desenvolvidos”. E há quem pense que possamos alcançar os 100 anos de tempo médio de vida nas próximas décadas. Esta evolução tem claramente a ver com os avanços científicos e sociais das nossas sociedades. Lá vai o tempo em que uma pneumonia era quase sempre mortal, ou em que os que estavam próximos do fim eram simplesmente abandonados à sua sorte.
Dizem-nos os que estudam a biologia da evolução que, depois de nos reproduzirmos e de garantirmos que os nossos filhos sobrevivem sem a nossa ajuda, deixamos de ser úteis para a espécie. Mas as comunidades humanas aprenderam, felizmente, a valorizar mais do que a simples reprodução. Os “outros” também nos ajudam no processo de realização pessoal e social. Reconhecemos que as sociedades são tanto mais ricas quanto mais são capazes de construir ambientes promotores de capacidades como o amor, a curiosidade, imaginação, compaixão, partilha e inovação, ao longo de toda a vida.
Chegamos a uma situação em que os avanços do conhecimento, nas ciências naturais, sociais e humanas, nos concedem anos adicionais de vida impensáveis no tempo dos nossos avós. Mas que não se limitam só a dar-nos mais anos; dão-nos também, frequentemente, a capacidade de os usufruir física e mentalmente.
Mas também hoje estamos mais conscientes de que os anos adicionais de vida não são sempre acompanhados da qualidade de vida igualmente desejada. E é sobre esta questão que gostaria de me debruçar. O que acontece quando alguém chega à conclusão que continuar a viver deixou de ter a dignidade que sempre valorizou e teme pela sua perda de autonomia.
Atualmente temos muitas formas diferentes de terminarmos a nossa vida se assim o desejarmos, usando armas brancas ou de fogo, vários tipos de acidentes, combinações de fármacos etc. Mas são quase sempre decisões e ações solitárias e frequentemente angustiantes.
Continua a ser punível na lei a assistência por parte de outrem, em particular por um profissional da saúde, ao suicídio de alguém que o tenha solicitado repetidamente ou quando ainda estava consciente. E é esta, na minha opinião, a questão principal em discussão no debate sobre a morte assistida.
Invoca-se a noção de que é o medo da dor insuportável que faz com que alguém queira terminar rapidamente o seu sofrimento, e que a morte não é solução, pois existem muitas formas de controlar a dor. Mas os efeitos secundários das elevadas doses necessárias destes fármacos são, por vezes, tão intoleráveis como a dor que tentam controlar. E é perfeitamente concebível que para muitos (em que eu me incluo) não é só a dor física que é intolerável. É também a ideia de que a “quantidade de vida” adicional não compensa a “qualidade de vida” perdida. E suspeito que, quanto maior tiver sido a “qualidade de vida” de alguém, menos disposta estará essa pessoa a valorizar só anos de vida adicionais. Quando começamos a sentir que a nossa continuada existência deixou de ter qualquer relação com as experiências físicas, racionais ou emocionais que mais valorizamos e que sentimos a nossa autonomia cada vez mais fragilizada, o fim parece perfeitamente razoável para muitos de nós. Pensar desta forma não é nem aberrante, nem patológico.
Outro conceito é o de que os profissionais de saúde devem tratar, curar se possível e acompanhar os doentes, nunca matar ou ajudar a morrer. O que faz todo o sentido e deve continuar a ser o seu principal objetivo. Mas só quem está muito mal informado ou se recusa a ver a realidade do mundo que nos rodeia é que não tem conhecimento de inúmeros casos de ajuda, por profissionais de saúde, a doentes perto do fim que querem acelerar a sua morte. Tudo feito às escondidas, à margem da lei, com enormes riscos de denúncia e com consequências profissionais gravíssimas. Não seria muito mais honesto evitar ao máximo, ou mesmo acabar com esta situação?
Outro argumento forte e plausível é o de que os países, onde se dá assistência médica aos que querem morrer, passarão a ser centros mundiais de morte assistida. Nenhuma das poucas experiências que existem neste domínio, tanto nos EUA como na Europa, comprova essa afirmação. E todas elas mostram que, onde é legal, o processo é longo, complexo e exigente – muito diferente do que se passa onde é criminalizado e por isso mesmo praticado às escondidas e sem qualquer controlo.
Uma das soluções sugeridas e que tem ganho alguma aceitação é a de não fazer nada para tentar alongar o tempo de vida que resta, quando a equipa médica decide que o paciente está em fase terminal. Esta solução, em que se mantém o paciente com a hidratação mínima necessária, e que pode durar dias ou semanas, é vista por muitos (onde eu me incluo) como cruel e insensível.
Por todas estas razões, e tantas outras que são sobejamente conhecidas, acho que a morte assistida deve ser legalizada e que o processo seja o mais exigente e rigoroso possível para evitar ao máximo aquilo que hoje acontece muitas vezes sem qualquer supervisão.
Para mim, a qualidade e dignidade da minha vida e da minha autonomia é muito mais importante que a “quantidade de vida” e suspeito que isso é verdade para muitos cidadãos. O dilema está em decidir quem deve dar a ajuda solicitada, quando os profissionais de saúde são impedidos de o fazer legalmente.