A cabeça de João
Claro que João Soares dificilmente se poderia ter mantido no governo depois da ameaça das bengaladas. Tal como Manuel Pinho, depois de ter usado a pública e cornuta expressão para diminuir um adversário político de então. Tal como eu próprio não poderia ter permanecido a gerir o SNS com tão evidentes provas de desapreço de tão ilustres governados que diariamente subiam ao Gólgota de Anadia e sofriam as dores de parto das mães de tantas crianças a nascer em ambulâncias. Há lições indiscutíveis. João Soares não tardou a tirá-la. E Costa não hesitou na aceitação, nem tentou a retenção. Mas fez bem em elevar o astral do seu ex-ministro, afirmando que ele poderia ter sido um bom intérprete para o mais insubstanciado dos cargos.
Com o episódio virtual numa intensa e dura semana, tudo se virou contra João e muitos exaltaram os elevados méritos culturais, críticos e cívicos das vítimas das bengaladas mediáticas. Sou leitor assíduo e sempre recompensado de Vasco, mesmo quando dele discordo duramente. Quase desconheço Augusto, a vítima principal, mas acredito nos amigos que me garantem o seu alto sentido crítico. Não é essa a questão. A questão está em desconhecermos a causa do “crime” de agressão verbal. Que terão os dois, ou cada um deles feito a João, para merecer o despautério? Só o próprio no-lo vai revelar, talvez daqui a uma ou duas décadas, nas suas memórias, então já só em suporte virtual. Quando os nossos netos, jovens adultos, a elas tiverem acesso, talvez compreendam a razão pela qual em 120 anos as figuras literárias mudaram tanto de estilo. Nessa altura vindoura, a densidade de insultos circulada nas redes sociais será um dos mais sólidos indicadores negativos de qualidade de vida dos cidadãos. Se o sacrifício de João para tal tiver contribuído, a imagem da sua cabeça na bandeja passará a ser uma relíquia a venerar.