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Por uma radical defesa das instituições

Por uma radical defesa das instituições

Há algumas semanas, aquele que chefia o partido de extrema-direita no nosso país, acossado por mais um dos escândalos de grosso calibre que têm minado uma larga fatia do seu grupo parlamentar, recorreu à sua manobra habitual: partir para o insulto para tentar desviar a atenção. Um dirigente do seu partido estava acusado da prática de sexo com menor a troco de dinheiro e o presidente da agremiação, em vez de começar pela sua casa política a “limpar Portugal”, decidiu insultar, repetidamente, dois antigos deputados, antigos ministros, antigos dirigentes socialistas: Paulo Pedroso e Eduardo Ferro Rodrigues, este último ex-Secretário-Geral do PS e recente (2015-2021) Presidente da Assembleia da República. Os insultos foram proferidos nas instalações da Assembleia da República e foram distribuídos entre o próprio hemiciclo, no plenário, e os Passos Perdidos.

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Acção socialista

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O «Ação Socialista» é o jornal oficial do Partido Socialista, cuja direção responde perante a Comissão Nacional. Criado em 30 de novembro de 1978, ...

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Opinião de:

O atual Presidente da Assembleia da República (PAR), José Pedro Aguiar-Branco, não se deu por achado. O que estava em causa não era apenas uma expressão política mais forte, nem uma mera deselegância. Era insulto. Era pura difamação. Não era uma opinião política, era mais uma mentira, uma calúnia soez.

Na primeira oportunidade em plenário, o Grupo Parlamentar do PS, pela voz do seu vice-presidente Deputado Pedro Delgado Alves, não apenas denunciou a situação, que qualificou como “mentira” e “difamação de servidores públicos toda a vida, de lutadores pela democracia, construtores da democracia”, como solicitou que houvesse explicitamente um “reparo”, um “repúdio” do ataque, em defesa do antigo Presidente do Parlamento.

Apesar dos desenvolvimentos que estão em discussão no que toca ao Código de Conduta dos Deputados, Aguiar-Branco, que não estava a presidir aos trabalhos no momento em que a questão foi suscitada pelo PS, nunca deu qualquer sinal de entender que não podia acomodar-se ao insulto e à difamação de um antigo Presidente do Parlamento.

Perante o ruidoso silêncio de Aguiar-Branco sobre esta matéria, Eduardo Ferro Rodrigues enviou, a 24 de fevereiro passado – soubemos agora – uma carta à segunda figura do Estado. Aí se pode ler:

“Doze dias passaram sobre estas calúnias, muitas das quais proferidas no Parlamento de que Vossa Excelência é Presidente, algumas delas em Plenário e lembradas na Conferência de Líderes que Vossa Excelência dirige.

Foram muito graves institucionalmente as ofensas difamatórias e cobardes proferidas contra mim.

Fui com muito orgulho e honra Presidente do Parlamento, eleito e reeleito em 2015 e 2019. Nunca ficaria em silêncio perante qualquer insinuação ou calúnia feitas nessa AR contra qualquer dos Presidentes que me antecederam – Barbosa de Melo, Almeida Santos, Mota Amaral, Jaime Gama ou Assunção Esteves. Nunca permitiria que os caluniassem ou ofendessem, em nome de qualquer “liberdade de expressão”.

Estou seriamente ofendido e indignado. Sinto-me atingido na minha honra pelas palavras de quem me caluniou e também pelo silêncio do Presidente da Assembleia da República.

Espero que atempadamente ainda se pronuncie sobre tudo isto, também em defesa do prestígio da Instituição que tem a responsabilidade de representar.”

Embora tenha lido referências noticiosas, não vi na sua integralidade a resposta de Aguiar-Branco a Ferro Rodrigues, razão pela qual não a vou comentar. O que sei, porque isso todos podemos constatar, é que o atual PAR, Aguiar-Branco, não deu nenhum sinal público de entender que este caso devia mobilizar o seu dever de defesa do Parlamento. Não deu nenhum sinal público de entender a gravidade da calúnia contra um antigo PAR. Parece que tudo continua a caber na liberdade de expressão dos deputados.

Como ontem disse no Parlamento a deputada do PS Isabel Moreira, ao vivermos tempos em que, “em nome de uma falsa liberdade de expressão, se permite um palco de calúnia e difamação”, enquanto se apelidam de “fake news” notícias que incomodam, temos aí sinal de estarmos num “momento de degradação do regime”.

Um sinal claro dessa “degradação do regime” é a incapacidade das pessoas que exercem funções da mais alta responsabilidade assumirem o cuidado que lhes é devido pela integridade das instituições. Trata-se da incapacidade para entender a qualidade especial das instituições humanas. Qualquer cidadão com 18 anos pode ser eleito deputado e qualquer deputado pode ser eleito presidente do parlamento, não é preciso pertencer a nenhuma casta de iluminados para exercer essa função; ser presidente do parlamento tão-pouco transforma essa pessoa num ser humano diferente dos outros, não se lhe pede que transcenda a natureza humana, nem que seja um super-herói. Mas a pessoa colocada nessa posição tem de assumir a especificidade da sua função. Exercer o seu papel. Especificamente, a segunda figura do Estado não pode colocar as outras dimensões da sua vida em prejuízo da sua responsabilidade institucional. Tem o dever de ver e ler as situações do ponto de vista da Constituição e da lei, que é o que conforma, neste caso, o seu lugar institucional, e não de qualquer ponto de vista particular.

José Pedro Aguiar-Branco, mais recentemente, colocou outra pedra nesta degradação, ao proferir, numa reunião partidária, teoricamente à porta fechada e na prática audível para todos os jornalistas circunstantes, a consideração, noticiada e não desmentida, de que o Secretário-Geral do PS fez “pior à democracia em seis dias do que André Ventura em seis anos”. Pedro Nuno Santos respondeu com grande sentido de Estado e grande elevação, recusando que tal episódio prejudique as relações institucionais entre ambos, verbalizando até alguma compreensão pelo estado de espírito em que tão desastrado pronunciamento fora proferido. Louvo Pedro Nuno Santos pela elevação, mas isso não nos impede de afirmar, claramente, que um Presidente da Assembleia da República não deixa de o ser por se encontrar numa reunião partidária ou em qualquer outra reunião – e, portanto, não é admissível qualquer intervalo no decoro que deve praticar na sua relação com os deputados. Já não bastava o descuido em condenar que deputados insultem outros deputados, acresce um pronunciamento político desequilibrado, desajustado, injusto, acerca do líder do maior partido da oposição.

Gritar pela liberdade não chega para ser democrata. Não é possível ser democrata sem defender as instituições próprias da democracia. É por isso que, se conquistámos a liberdade a 25 de Abril de 1974, só conquistámos a democracia, como regime, com a Constituição e com as instituições conformadas de acordo com a vontade popular expressa e com as regras legítima e legalmente consagradas. Gritar pela liberdade e manter-se passivo perante os ataques às instituições, ou, mesmo, minar por dentro o próprio funcionamento das instituições, não é um comportamento democrático. Vivemos tempos difíceis, também, porque chegaram às mais altas responsabilidades concidadãos que não têm a clareza destes pontos a guiar a sua ação.

A defesa radical das instituições democráticas – radical, quer dizer, plena e sem tergiversação, sem cedência aos interesses partidários de curto prazo – é tarefa de primeiro plano na defesa da própria democracia. Que não nos cansemos de o defender e de o praticar.

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