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“MULHER NA DEMOCRACIA / NÃO É BIOMBO DE SALA”

“MULHER NA DEMOCRACIA / NÃO É BIOMBO DE SALA”

“Mulher na democracia / Não é biombo de sala” são dois versos da canção “Teresa Torga”, de José Afonso, no álbum “Com as minhas tamanquinhas”, de 1976, agora recriada por Júlio Pereira, com a participação de Mariza Liz. O cantautor do original inspira-se para esta criação numa história verídica, uma história de rua com uma mulher de carne e osso, e de um repórter fotográfico que terá visto mais a oportunidade do registo do que a dignidade do ser humano, daquela mulher.

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Acção socialista

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O «Ação Socialista» é o jornal oficial do Partido Socialista, cuja direção responde perante a Comissão Nacional. Criado em 30 de novembro de 1978, ...

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Opinião de:

Porfírio Silva

Escolhi esse quase-refrão de canção para mote deste editorial comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril, porque, havendo muito a dizer sobre meio século de processo democrático, nascido de um processo revolucionário agitado, mas frutuoso, seria impossível fazer caber num texto tão curto todas as realizações que comemoramos. Todas as conquistas por concretizar. E todas as veredas ainda por abrir. Assim, escolhi um só tema: as mulheres na sociedade portuguesa. O caminho que Abril abriu às mulheres – e aos homens que não podem sentir-se realizados enquanto houver discriminação e desigualdade entre homens e mulheres – é, certamente, uma das transformações mais profundas e mais significativas operadas na sociedade portuguesa, por nossas mãos, aproveitando as possibilidades abertas por esse “dia inicial inteiro e limpo”.

Antes do 25 de Abril de 1974, não era apenas a condição socioeconómica que pesava comparativamente mais sobre a vida das mulheres: a lei, ela mesma, impunha uma claríssima menorização das mulheres e a sua subordinação aos homens. Aos homens como grupo social, e também subordinação das mulheres aos “seus” homens. Por exemplo, as mulheres não podiam votar em pé de igualdade. Não podiam sair do país sem autorização do marido. Não podiam ser magistradas nem diplomatas. Nem tão pouco enfermeiras se fossem casadas. As mulheres estavam submetidas aos homens no espaço privado e no espaço público, secundarizadas no quadro de um princípio de desigualdade legalmente consagrado e sempre destinado a acantonar as mulheres em papéis que outros lhes destinavam. A ditadura era, também, um regime machista, embora se encontrassem homens e mulheres de todos os lados de todas as barricadas.

Essa situação legal abominável estava enraizada nos fundamentos ideológicos do Estado Novo. A Constituição de 1933 declarava a igualdade dos cidadãos perante a lei, mas excecionava as mulheres desse princípio geral, considerando a “sua natureza” e o “bem da família”, ao abrigo de uma ideologia que reservava as mulheres para a “missão da maternidade”, para o “lar” e para o “governo doméstico”, mas sempre em posição de submissão ao homem. Convém não estarmos desatentos do regresso da matriz fundadora deste discurso e deste tipo de legislação, que testemunhamos nos nossos dias.

Com o 25 de Abril, pelas primeiras brechas do regime antigo rapidamente começaram a passar pequenas libertações relevantes para metade da população. Logo nos primeiros meses da revolução, três diplomas acabam com a proibição de as mulheres acederem à magistratura (junho de 1974), à carreira diplomática (julho de 1974) e a todos os cargos da carreira administrativa local (setembro de 1974). Nos anos seguintes, as restrições no acesso ao emprego continuarão a ser removidas. Em 1978, cada um dos cônjuges passa a poder exercer qualquer profissão sem estar dependente de consentimento do outro (o que só é novidade para as mulheres) e a mulher passou a poder ser comerciante sem ter de obter autorização do marido.

Ainda em 1974, foram abolidas as atenuantes especiais para o crime de homicídio cometido pelo marido contra a esposa adúltera (que não eram simétricas da consideração dada ao marido adúltero).

Também ainda em 1974, e quanto aos direitos políticos, é um diploma legal do mês de novembro que estabelece com carácter universal o direito das mulheres ao voto livre. Entre as primeiras eleições e os anos mais recentes, aumentou significativamente a percentagem de mulheres eleitas para o Parlamento: 20 em 250 na Assembleia Constituinte (1975), 76 em 230 no arranque da XVI legislatura, resultante das eleições de 10 de março de 2024 (mesmo assim, uma percentagem inferior à das duas legislaturas anteriores).

Em maio de 1975, um decreto-lei alterou diversos artigos do Código Civil relativos ao divórcio, passando o casamento católico a obedecer, na ordem jurídica da República, apenas à lei do Estado, permitindo a sua dissolução nas mesmas condições que o casamento civil.

Em 1976 (junho), o marido deixou legalmente de poder abrir a correspondência da mulher.

Contudo, a grande realização de 1976 é a Constituição democrática, que foi aprovada e entrou em vigor nesse Abril, arrastando enormes consequências, não apenas pelo seu próprio texto, mas, ainda, por implicar a revisão dos vários códigos jurídicos portugueses (nomeadamente, o Código Civil) no sentido progressista que era o constitucional (no caso dos direitos, liberdades e garantias impondo um prazo para o efeito). Embora elaborada e aprovada no meio de tensão política generalizada, teve apenas o voto contra do partido (então) mais à direita do Parlamento, o CDS – embora o PPD tenha cogitado também votar contra.

A Constituição de 1976, ao definir como um dos princípios constitucionais fundamentais que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”, e ao acabar com as exceções com que a lei fundamental da ditadura cerceava os direitos das mulheres, estabeleceu um quadro radicalmente diferente do herdado. Além do mais, e vistas algumas das discriminações acima referidas, cabe notar que a Constituição de 1976 estipulava, neste campo, a igualdade de escolha de profissão, de acesso ao trabalho, e de remuneração salarial, sem discriminação de género, além de assegurar a igualdade de direitos e deveres dos cônjuges na «manutenção e educação dos filhos» e de acrescentar força constitucional à legislação então já em vigor no tocante ao divórcio.

Em 1978, a entrada em vigor da revisão do Código Civil concretizou avanços significativos nos direitos das mulheres: no casamento, a mulher deixou ter o estatuto de dependente do marido; deixou de existir a figura do “chefe de família” e deixou de estar atribuída ao homem a administração dos bens do casal; desapareceu a atribuição específica à mulher das tarefas do governo da casa; a decisão sobre a residência da família passou a ser de ambos os cônjuges e não apenas do homem; o poder paternal passou a pertencer em plano de igualdade à mulher e ao homem, quando, antes, a mulher era apenas conselheira do decisor masculino; a possibilidade de, no casamento, tomar apelidos do cônjuge, passou a ter as mesmas condições para homem e para mulher.

Cabe realçar que a revisão da legislação, para cumprir o comando constitucional, beneficiou muito, quer na eficiência quer na celeridade, do empenho do I Governo Constitucional, liderado por Mário Soares, que criou comissões, recheadas de eminentes juristas, para desenhar o novo quadro jurídico, tendo produzido avanços muito para além dos estritamente exigidos pelo novo quadro constitucional. A legislação foi aprovada sob autorização legislativa concedida ao Governo pela Assembleia da República.

Depois deste forte impulso inicial, outros passos houve que dar. Não há aqui espaço para rever esse caminho – e ele tem muitas facetas. Lembremos, apenas, como exemplo de outras dimensões que foram avançando nos anos posteriores, que em 1984 foi aprovada a primeira lei que descriminalizou o aborto em determinadas condições muito específicas, tendo, portanto, uma aplicação restrita. Em 2007, foi adotada a lei sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, que permite a IVG por opção da mulher nas primeiras 10 semanas de gravidez. Uma das consequências tem sido a redução continuada da taxa de realização de IVG, redução que acompanha o fim do tratamento indigno que era reservado às mulheres que abortavam.

Muito falta fazer – mas o que falta fazer vem na senda de uma transformação profunda e muito significativa que o 25 de Abril permitiu concretizar na vida das mulheres portuguesas. Isso comemoramos. Mas a comemoração tem, também, o sentido de nos dar, coletivamente, força para fazer o que é necessário e falta fazer. Por exemplo, a luta pela igualdade salarial para trabalho igual continua: se, na Administração Pública, a desigualdade de salários e de ganhos entre homens e mulheres tende para nula, no setor privado ainda precisamos de conhecer melhor os efeitos da legislação introduzida em 2019 para monitorizar e corrigir as desigualdades salariais para trabalhos de igual valor.

Há, contudo, outra dimensão onde é doloroso que não tenhamos conseguido ir mais longe. A chaga social da violência contra as mulheres, designadamente a violência exercida em contexto familiar, continua a atormentar-nos.

Só em 1982 é que foi criminalizada a violência no contexto de relações de intimidade (os maus-tratos ao cônjuge, que, sabemos, têm como principais vítimas, numa percentagem esmagadora, as mulheres, e, como principais agentes, homens). Em 1995, o crime passa a integrar os maus-tratos psíquicos, agravando-se a moldura penal. Em 2000, passa a crime público. Em 2007, o conceito de violência doméstica é alargado, passando a abranger situações que integram a mesma realidade social, mas estavam excluídas por circunstâncias específicas. Em 2009, aprova-se a concessão de indemnização às vítimas e alargam-se as medidas de proteção. E outros aperfeiçoamentos legislativos têm sido introduzidos. No entanto, a violência contra as mulheres, incluindo o feminicídio, continua, ainda não a conseguimos travar. Sustentados na força que nos dá sabermos o tanto que o Portugal de Abril já conseguiu no caminho da igualdade entre homens e mulheres, temos de encontrar os caminhos de vencer mais esta prova nesse sentido.

Continuar Abril. Sempre!

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