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Evaporação do centro

Evaporação do centro

Um dos efeitos mais visíveis da atual crise política tem a ver com o desaparecimento do antigo centro político. Não foi de agora, mas consolidou-se ao longo dos últimos quatro anos. O governo da anterior coligação encostou-se todo à direita, num radicalismo ideológico encoberto pela capa da emergência financeira. Com o pretexto de cumprir sem discussão ditames de Bruxelas, tantas vezes absurdos e tecnicamente errados, absorveu a cartilha de um liberalismo de pacotilha, já envelhecido pela morte lenta do estafado consenso de Washington, em que se baseiam as teses neoliberais, concebidas em algumas universidades norte-americanas e aplicadas pela dupla Thatcher-Reagan.

Opinião de:

Evaporação do centro

A exportação ideológica contaminou e influenciou. Contaminou a mediocridade intelectual à direita, órfã de uma ideologia decente desde o período nazi-fascista. Influenciou primeiro o pensamento económico e depois o pensamento político, conduzindo à lenta perversão da social-democracia, enfraquecido o seu paradigma que reconstruiu a Europa do pós-guerra. As tentativas de terceira via, que chegaram a ter sucesso com Clinton, acabaram por perder crédito com o desempenho condenável de Tony Blair, aquando da guerra do Iraque.

Chegaram tarde a Portugal. Tarde e recessas. Quando hoje se ouve Manuela Ferreira Leite a debater com o tonitruante Medina Carreira, compreende-se que a sua aversão ao recusado Primeiro-ministro Passos Coelho não é pessoal, mas profundamente intelectual e ideológica. Manuela pode não gostar dos socialistas, mas está mais afastada de Passos que de Costa. Porque sentiu, mais que ninguém, a perda do centro político, neste caso do centro direita, onde ela convivia com acerto com a social-democracia. O centro político foi entre nós esvaziado pela frieza e teimosia de Passos, acolitada pela permanente dissipação de valores realizada por Portas entre cada duas viagens intercontinentais.

A consequência desta conduta foi a fuga de eleitores do centro para a esquerda e até para além do PS. Setecentos e quarenta mil.

A clivagem aberta pelo governo da coligação não teve efeitos apenas à direita. Também à esquerda. A germinação do consenso contra um adversário comum, que tanto mal praticou em quatro anos, tornou-se natural. Todavia, surpreendeu. Por ser inusitada, por derrubar preconceitos de quarenta anos, por unir em vez de desunir. O PS, mais que motor, foi o recipiente de um testemunho difícil. Coube-lhe interpretar este acontecimento político, catalisar as forças desejosas de se agregarem e agarrar a oportunidade histórica. Desengane-se, pois, quem pense tratar-se de oportunismo, ou de uma longa premeditação. Nem uma coisa nem outra. Apenas a perceção de um momento único e o seu protagonismo inteligente. Esse foi o mérito de António Costa.

A duração deste insólito estado conjugado não será efémera. Porque anda associada à conduta do causador. E este, não só não dá sinais de inverter a sua conduta, como nem sequer parece ainda ter compreendido o que lhe aconteceu. Às forças que agora se uniram não vão bastar os erros dos adversários. Elas terão que construir uma nova relação, tímida de início mas pouco a pouco reforçada na ação politica. Se o conseguirem, poderão mudar o panorama político por muitos anos.