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UM OUTRO 25 DE ABRIL

UM OUTRO 25 DE ABRIL

Talvez alguns já se tenham esquecido. Uns porque não se lembram de lembrar. E outros porque não se esquecem de esquecer. Talvez alguns já se tenham esquecido do que foram, nos anos antes deste ano, as comemorações do 25 de Abril na Assembleia da República.

Opinião de:

UM OUTRO 25 DE ABRIL

O cenário era o dos grandes dias, mas o que ali se passava era dos pequenos dias. Cada palavra dita pela maioria de então tinha a lâmina de um ajuste de contas político (com a história, com o 25 de Abril, com o socialismo, com a democracia, com “os piegas”). E cada palavra que o Presidente de então dizia tinha a acidez de um ressentimento pessoal (inseguro, complexado, agressivo e sempre a precisar de puxar pelos galões). O que ali se passava aproximava-se do psicodrama. Nunca houve, na democracia portuguesa, uma política tão atravessada pela psicoterapia. 

“Psicopolítica” chamou o filósofo Byung- Chul Han ao seu livro sobre a crise da liberdade e o psicopoder – o processo neoliberal assente na coação, que leva o ser humano a submeter-se a si mesmo sem ter clara consciência disso ( “ O sujeito submetido não está sequer consciente da sua sujeição”). Assumindo-se como o seu próprio controlador, cada cidadão escolhe o que o obrigam a escolher, convencido de que está a escolher livremente (“Protege-me do que eu quero”). Este é um poder que “ em lugar de fazer os homens submissos, intenta fazê-los dependentes”. Neste processo, comunicação e controlo coincidem. 

À luz do que neste livro se diz, os discursos das comemorações passadas do 25 de Abril podem ser vistos como o símbolo dessa coincidência entre comunicação e controlo, através do seu mais repetido teorema: o de que “não há alternativa.” Para a maioria de então, não há alternativa ao neoliberalismo, porque o seu desígnio é salvífico: ele é um capitalismo científico e um novo determinismo histórico, o único que não se desencontra com a realidade. Para o Presidente da República de então, “duas pessoas sérias com a mesma informação têm de concordar”. Aqui, a naiveté intelectual alia-se à impreparação política. 

Tudo nessas cerimónias era tenso e fechado (Soares, Alegre e os capitães de Abril deixaram de lá ir). As pessoas olhavam-se para se excluir. Quem não pensasse o que o outro pensava ficava sob suspeita. O Presidente e o Governo, cercados de seguranças que exibiam a sua presença e a arrogância dela, faziam dessa exibição o rosto do seu poder, cujo código era o da autossuficiência e da separação altiva.

Este ano, mesmo com os problemas gravíssimos a que temos de fazer face, o clima da cerimónia em que se celebrou o Dia da Liberdade passou a ser aquele que é normal numa democracia com 42 anos de idade. Os partidos dizem o que têm a dizer sem que isso seja outra coisa que não isso. E o Presidente fala do que tem de falar sem que isso seja o sinal de um confronto, de uma ameaça ou de uma vingança. Desta vez, o clima foi vivo, aberto e comunicativo.

O Presidente da República disse muitas coisas interessantes neste seu discurso do 25 de abril. Mas, de tudo o que disse de interessante, o mais importante foi isto: 

“Felizmente, também, há, no nosso País, neste momento, dois caminhos muito bem definidos e diferenciados quanto à governação, ao modo de se atingir as metas nacionais.

Diversos quanto ao papel do Estado na economia e na sociedade. Diversos quanto às prioridades para a criação de riqueza. Diversos quanto ao tempo e ao modo da redistribuição da riqueza. Diversos na filosofia e na prática política.

Cada um desses caminhos é plural, mas querendo ser alternativo ao outro. Com lideranças e propostas próprias. Clarificação esta muito salutar e fecunda.

A Democracia faz-se de pluralismo, de debate, de alternativa. Assim, quem se pretenda alternativa, de um lado e de outro, demonstre, em permanência, a humildade e a competência para tanto.

Temos, assim, amplo acordo de objetivos nacionais, por um lado, e dois distintos modelos de governação, por outro”.

Estas palavras enunciam um fundamento da democracia e não seriam tão importantes se ele não tivesse sido negado em anos que felizmente passaram. Assim, a sua importância é a de repor esse fundamento como fundamento do nosso dia-a-dia político. “ Há dois caminhos muito bem definidos e diferenciados”, afirmou o Presidente. Afirmar isso é, desde logo, uma heterodoxia à ortodoxia da maioria anterior. Afirmar isso é afirmar que, em democracia, há sempre alternativas. O atual governo não é apenas uma alternativa ao anterior governo. É também uma alternativa ao “não há alternativa.” Foi também isso que Marcelo Rebelo de Sousa disse com palavras que a oposição, fiel ao seu passado de maioria, não pode ter gostado de ouvir.