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Só Acontece aos Outros

Só Acontece aos Outros

Na semana passada foi reeditado, com dois textos inéditos, “Só Acontece aos Outros”, de Maria Antónia Palla, um livro publicado pela primeira vez em 1979.

Opinião de:

Só Acontece aos Outros

Este impressionante retrato de um país, que na década de 70 procurava alinhar-se com o resto da Europa na modernização legislativa e na evolução das mentalidades, é um duplo murro no estômago: pela brutalidade da natureza humana que revela e pela evidência de que pouco mudou, em 40 anos, na essência da natureza humana.

As histórias de violência ocorridas em Portugal entre 1970 e 1979, principalmente com mulheres, jovens e crianças, tal como foram escritas pela jornalista Maria Antónia Palla e publicadas no Jornal Século Ilustrado, são um retrato do Portugal retrógrado, arcaico, preconceituoso, pobre e inculto de que nos queremos esquecer: crianças maltratadas, negligenciadas e assassinadas devido à pobreza, ao alcoolismo, ao desemprego; mulheres violentadas de todas as formas – física, psíquica e civicamente; jovens e idosos, violadas, agredidos, abandonados, sem esperança, sem futuro nem qualquer vislumbre de fuga ao lodo. Violência, muita violência infantil. Uma marca indelével em comportamentos futuros que desenham adultos violentos que reproduzirão os mesmos modelos agressivos.

A dor, a vergonha, as mães adolescentes, a pobreza inimaginável, a todos os níveis.

Maria António Palla desvenda a violência semioculta na sociedade portuguesa dessa época com o olhar insistente da jornalista que não desiste de procurar saber os contornos humanos por detrás das histórias de horror que fizeram um ou outro título da imprensa, mas que depois passaram ao esquecimento na espuma das notícias.

Em boa hora Maria Antónia Palla não nos deixa esquecer. Não queremos esquecer! Estas vítimas precisam e merecem a nossa memória. Foram vencidas na batalha da civilização numa guerra que ainda não está ganha, longe disso. Todos os dias os jornais se enchem com estórias horríficas de assassinatos e sevícias sobre crianças, mulheres e idosos, em 2017; todos os dias ocorrem injustiças incompreensíveis nas decisões judiciais sobre atribuição de direitos parentais ou violência doméstica. Na verdade, vivemos em estado de guerra permanente entre os mais frágeis e os mais fortes. É um conflito infindável que precisa, sobretudo, de clarividência, de memória e de informação.

Não acontece apenas aos outros, não. Porque os outros somos nós numa sociedade verdadeiramente evoluída.