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Opinião: Sol de Outubro

    1. Poucas coisas me causam mais alegria que o sol de Outubro. Gosto destes dias sobremaneira serenos, de onde se ausenta a incandescência feroz do estio sem que se manifeste ainda a desolação fria do Inverno. A natureza parece alcançar um ponto de sublime quietude. As próprias cidades ecoam um ruído propício a uma reflexão um pouco distanciada das banalidades do dia-a-dia.Talvez Outubro torne os homens mais sensatos. A sensatez, contrariamente ao que pensam os filisteus que confundem carácter com proclamação de posições extremistas, percebida com o sentido que os pensadores gregos atribuíam ao conceito de prudência, representa uma qualidade imprescindível para a plena afirmação da vida democrática. Sem ela todos os desvarios se tornam possíveis, como o prova abundantemente a história humana.Um ano depois das últimas eleições legislativas, o Primeiro-Ministro António Costa concedeu uma longa entrevista ao Público; um dos seus maîtres a penser, Porfírio Silva, publicou um artigo no Diário de Notícias; e Sérgio Sousa Pinto escreveu um texto de excepcional qualidade neste jornal.Vale a pena articular as três peças. A entrevista de António Costa, inteligente e bem estruturada, define-se em absoluto numa simples frase em que se demarca das já muito conhecidas declarações de Mariana Mortágua: “essa nem é a linguagem do PS”. Dificilmente um crítico acérrimo da presente coligação governativa poderia usar de maior dureza no esforço de demarcação de águas entre o Partido Socialista e o Bloco de Esquerda. Quando Costa, ainda antes de explicitar concretamente a diferença, alude à radical divergência de linguagem, remete para uma contraposição insolúvel de visões do mundo. O que separa o PS, na óptica do próprio Primeiro-Ministro, do seu principal aliado governativo, não é uma qualquer divergência de pormenor, uma pequena diferença de análise ou uma insignificante contradição. Não. Quando se remete para o plano da linguagem transporta-se a diferença para um domínio que tem que ver com o mais profundo do pensamento político. Não sei se António Costa teve plena consciência da importância da ruptura que estava a assinalar, nem isso é objectivamente relevante. No resto da entrevista, aparece-nos um Primeiro-Ministro de centro-esquerda, claramente europeísta, empenhado em permanecer fiel à história do Partido Socialista, sem perder de vista a necessária actualização da mesma.Porfírio Silva, homem de inequívoca densidade intelectual, dedicou-se a escrever um texto a todos os títulos surpreendente. Depois de um congresso do BE marcado quase exclusivamente por uma algazarra antieuropeia — que teve o seu corolário patético na proposta de realização de um referendo sobre a permanência de Portugal na UE em função da eventual aplicação de sanções ao nosso país —, e nas vésperas de um conclave comunista que não deixará, por certo, de fazer do projecto europeu o bombo da festa da inflamada vozearia marxista-leninista, vem apelar a uma convergência de posições das várias esquerdas sobre a União Europeia. Ou estamos no campo da candura ou já chegamos ao domínio do delírio. Não é que Porfírio Silva não tenha razão naquilo que diz — o problema é que aquilo que ele pretende está em contradição quase patológica com a realidade.

      Por fim, o texto de Sérgio Sousa Pinto, de uma lucidez que pode passar por crueldade, de uma inteligência que pode ser confundida com cinismo, de uma coragem que não pode ser tomada por outra coisa qualquer. A sua voz, cada vez mais audível, não poderá deixar de influenciar o futuro do PS.

      Ao fim de um ano talvez seja ainda possível para muita gente acreditar no sucesso da solução governativa e parlamentar em vigor. Admito mesmo que muitos militantes e simpatizantes socialistas ainda vivam genuinamente numa fase encantatória. Mesmo que isso seja a meu ver politicamente errado, há algo de humanamente tocante nessa esperança e a que ninguém pode ser insensível. Só que em cada dia futuro se irá tornando mais evidente aquilo que António Costa afirmou com invulgar clareza: a linguagem deles não é a nossa linguagem, o mundo deles não é o nosso mundo e a representação do futuro a que eles aderem não é a nossa representação do futuro. Não o é agora como não o era há quarenta anos, e como quase nunca o foi em grande parte do século XX europeu.

    2. Como já várias vezes aqui escrevi, considero que Rui Moreira tem desempenhado de forma muito satisfatória a função de Presidente da Câmara Municipal do Porto e que o entendimento pós-eleitoral que o movimento independente por si liderado estabeleceu com o PS se revelou útil para a cidade. Compreendi, por isso mesmo, a decisão tomada na semana passada pelo órgão concelhio socialista no sentido de mandatar o seu presidente para iniciar conversações com vista à renovação desse acordo, que teria agora um carácter pré-eleitoral. Um acordo dessa natureza teria necessariamente de conter uma dimensão programática e uma nítida definição da distribuição das responsabilidades políticas. Ora, para que assim sucedesse, teria de haver uma negociação séria e transparente da qual resultasse um compromisso público a submeter ao sufrágio dos cidadãos portuenses.Rui Moreira, ao manifestar, como o fez inequivocamente esta semana numa entrevista à TSF, uma indisponibilidade de princípio para a celebração de qualquer compromisso com os partidos políticos, inviabilizou a solução arquitectada no interior do PS-Porto. É natural que o actual presidente da autarquia não queira abdicar do seu estatuto de independência face à constelação partidária portuense, temendo perder, assim, grande parte da identidade do seu próprio projecto. A circunstância de Manuel Pizarro ser presentemente líder da distrital do PS e figura integrante do núcleo político íntimo do Primeiro-Ministro terá pesado, de algum modo, na decisão de Moreira.

      A vida é o que é, e assim sendo só resta ao Partido Socialista uma saída digna e consonante com as suas enormes responsabilidades cívicas e políticas — apresentar uma candidatura própria à Câmara Municipal do Porto.