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Entrevista de António Costa ao jornal Público (2ª parte)

Entrevista de António Costa ao jornal Público (2ª parte)

António Costa não se revê no populismo e salienta que os quatro líderes da maioria parlamentar não têm discursos idênticos. Sobre a eventual substituição de Jerónimo de Sousa à frente do PCP, diz que gostará “sempre” dele “qualquer que seja a função”. Recusa-se a falar sobre decisões que competem ao PCP, mas sublinha que o partido “será sempre um parceiro leal na execução do programa do Governo”.

Concorda com Mariana Mortágua quando esta diz que “do ponto de vista prático, a primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro”?
Não. Sabe que essa nem é a linguagem do PS, nem é essa a ordem de prioridade que temos. Há uma preocupação comum, certamente subjacente a essas palavras e que partilhamos. É que é necessário uma maior justiça fiscal. Isso consta, aliás, do programa eleitoral do PS, em primeiro lugar haver uma maior redistribuição da carga fiscal. Nós temos uma carga fiscal que incide sobre os rendimentos do trabalho absolutamente desproporcionada em relação a sobre outras formas de rendimento. E para termos maior justiça fiscal não só quem ganha mais deve pagar mais do que quem ganha menos, também os rendimentos do trabalho podem ser aliviados em detrimento de outras fontes de rendimento.

Estamos, por exemplo, a eliminar a sobretaxa do IRS, já eliminámos para a generalidade das famílias portuguesas em 2016, vamos completar em 2017 aliviando quem ganha mais. Agora, para podermos suportar esta redução da tributação sobre o trabalho (como suportar o aumento de rendimentos dos pensionistas e mantermos simultaneamente um bom equilíbrio das finanças públicas), temos de redistribuir estas fontes de tributação sem aumentar o conjunto da carga fiscal. É isso que se procura fazer. E, portanto, desde o cenário macroeconómico ao programa eleitoral do PS, a tributação do património consta expressamente como uma medida que tem que ser adoptada. Está a ser calibrada, está a ser devidamente ponderada de forma a assegurar o financiamento necessário — mas também a não ser um desincentivo ao mercado do arrendamento ou uma penalização dos proprietários nas suas casas de morada.

Uma espécie de sobretaxa do IMI soft?
Sobretaxa do IMI já existe. O Governo anterior introduziu um imposto de selo que era verdadeiramente uma espécie de sobretaxa estadual do IMI. Aquilo que estamos a procurar fazer é reformular esse sistema, que tem sido pouco eficaz na tributação, de forma a ser mais eficaz.

Pelo que diz, será um imposto soft.
Qualquer cêntimo para um contribuinte não é soft. Não vou dizer se é soft se é hard. Vou dizer simplesmente o seguinte: será uma medida que contribua para termos uma maior justiça fiscal, para termos uma melhor redistribuição da base tributada e, simultaneamente, não comprometer nem o investimento nem a dinamização do mercado de arrendamento.

De todo o modo, ele irá existir e virá para o Orçamento?
Irá existir e virá para o Orçamento.

Como analisa os contornos populistas que o discurso do BE tem assumido? Nomeadamente neste episódio, mas também na defesa do referendo às sanções. Sente-se confortável com este discurso populista.
Nós temos um acordo político com o PEV, o BE e o PCP. Estamos entendidos sobre o que fazer mas respeitamos a identidade de cada um.

Mas não o incomoda o populismo?
Como porventura em muitas das coisas que alguns dos outros partidos que apoiam o Governo dizem, eu não me reconheço, é provável que eles não se reconheçam nas coisas que eu digo. O Jerónimo de Sousa costuma, aliás, dizer isso de uma forma bastante clara: este não é o nosso Governo, este é o Governo do PS. E ninguém tem dúvidas quando o Jerónimo de Sousa fala, quando a Catarina Martins fala, quando a Heloísa Apolónia fala ou quando eu falo. Não falamos por todos, cada um fala por si e pelo seu próprio partido.

Admito que seja estranho, sobretudo depois de quatro anos onde tivemos uma coligação que assentava no esmagamento da diferença do outro e em que a solidez da coligação passava pelo CDS ter de revogar sistematicamente aquilo que considerava que era irrevogável. Esta solução governativa não exige a ninguém que revogue o que é irrevogável. Cada um pode estar confortável na sua própria identidade, respeitando as diferenças e sem ter de se confundir com aquilo que é a diferença dos outros. E acho que isso é muito positivo e rico para a nossa democracia

O PCP vai ter congresso e apresentou as novas Teses. Acha que o entendimento de governação mudou de alguma maneira o PCP e o BE?
Todos os dias todos nós mudamos. Esta é uma experiência nova, obviamente, em que todos nós temos aprendido bem a trabalhar uns com os outros — e temos sobretudo aprendido rápido. A melhor demonstração disso é que há um ano ninguém acreditava que a solução tivesse sido possível, que resistisse ao primeiro Orçamento, que resistisse depois ao Programa de Estabilidade e Crescimento, que resistisse às diferentes provas a que foi sendo submetida. E a verdade é que, ao fim de um ano, hoje, pouca gente duvida da solidez desta solução e da forma como asseguramos a essência de estabilidade do país.

Gostaria de ver Jerónimo continuar à frente do PCP?
Gosto do Jerónimo de Sousa e gostarei do Jerónimo de Sousa sempre qualquer que seja a função. Aliás, é dos líderes partidários que mais generalizadamente reúne simpatia na sociedade portuguesa. Mas não me compete a mim estar a pronunciar-me sobre coisas que dizem exclusivamente respeito ao PCP. Sem prejuízo do contributo essencial que o Jerónimo de Sousa tem dado para o sucesso deste processo de mudança em Portugal e para esta solução governativa, não tenho dúvidas nenhumas que o PCP, independentemente de quem esteja à frente da sua liderança, será sempre um parceiro leal na execução do programa do Governo.

Vê que esta solução de Governo seja possível numa segunda legislatura ou vê-a mais como uma solução transitória?
É a solução que temos e é a solução, certamente, que perdurará enquanto der resultados positivos e enquanto sentirmos que todos juntos podemos fazer mais e melhor do que cada um em separado. Tenho uma avaliação francamente positiva desta solução, defendi-a antes das eleições, defendi-a depois das eleições, todos os dias procuro contribuir para que ela tenha sucesso. Portanto acho que temos de ter uma perspectiva aberta e positiva quanto ao futuro. E o futuro o dirá.

O que dá força a esta maioria é o pragmatismo

Um ano depois das eleições “temos uma democracia bastante mais inclusiva”, diz António Costa. Quanto ao PS, garante que este partido “está hoje na posição onde sempre esteve: o partido social-democrata que existe em Portugal”.

Continua a sentir-se confortável sendo primeiro-ministro sem que o seu partido tenha ganho as eleições?
A maioria parlamentar que existe na Assembleia da República provou ao longo deste ano ser suficientemente sólida, consistente, coerente para ter viabilizado esta solução governativa. Desse ponto de vista, o balanço que podemos fazer um ano depois, é que sim, valeu a pena e é claramente positiva. São positivos os resultados.

Não teme ainda ser olhado como alguém que usurpou o poder? Convive bem com isso?
É uma questão que está claramente ultrapassada. Ninguém tem dúvidas, desde o anterior Presidente da República ao actual Presidente da República, no Parlamento, ninguém questiona a legitimidade constitucional e política desta solução, que os resultados têm confirmado ser uma boa solução. Porque permitiu fazer aquilo que era a vontade clara da maioria dos portugueses: virar a página da austeridade conseguindo cumprir os nossos compromissos europeus.

Fez uma mudança estratégica no PS introduzindo uma nova política de alianças. Mas há quem o acuse de também puxar o perfil programático do partido à esquerda. Isso é um dado adquirido para si?
São duas questões. Primeiro, há dois anos, quando concorri às eleições primárias no PS, fui muito claro sobre a minha visão sobre as formas de governação. O objectivo do PS naturalmente era ter maioria absoluta, que era essencial. Não havendo maioria absoluta, era ter uma solução estável. E que as soluções estáveis não podiam estar confinadas aquilo que tinham sido os limites que tinham vindo a ser impostos à democracia, como haver um arco da governação que pré-definia quem eram os partidos que tinham direito a representar os portugueses no Governo. Eu disse claramente que não aceitava esse conceito, explicitei-o quando concorri às primárias, quando apresentei a moção ao congresso, na campanha eleitoral. Acho que o balanço que o conjunto da sociedade portuguesa hoje faz é claramente positivo. Hoje os portugueses têm ao seu dispor mais respostas políticas e mais respostas políticas do que aquelas que tinham anteriormente. Temos uma democracia bastante mais inclusiva.

Respondendo à segunda pergunta, o PS está hoje na posição onde sempre esteve: o partido social-democrata que existe em Portugal e sintonizado com as causas do seu tempo.

Portanto, o PS não virou à esquerda?
Há muitos anos fiz um discurso que na altura foi muito gozado, creio que durante a liderança do engenheiro Guterres, dizendo que sempre achei incompreensível esse debate do pisca-pisca — se o PS vira à esquerda, se o PS vira à direita, se o PS vira ao centro. O PS tem uma identidade muito clara e caldeada ao longo destes quarenta anos de experiência. É o partido campeão na liberdade, da defesa da democracia, da integração europeia, mas também da luta contra as desigualdades. Temos estado sempre sintonizados com aquilo que são as principais causas de cada momento. Quando a questão principal era a consolidação da democracia o PS esteve na linha da frente, quando era o processo de integração europeia o PS esteve na linha da frente, quando era a modernização do país o PS esteve na linha da frente, quando a questão é o combate às desigualdades o PS também tem que estar na linha da frente. Portanto, temos estado sempre, em cada um dos momentos onde sempre estivemos.

Como é possível ao PS comungar uma proposta e praticar soluções para o país com partidos cuja raiz ideológica é o marxismo-leninismo e em que, no passado ou na origem desses partidos estão pessoas que defenderam projectos totalitários?
A chave desta solução governativa não está em qualquer dos quatro partidos ter eliminado a identidade ideológica que o caracteriza e os diferencia dos restantes. Aquilo que permitiu, aquilo que permite e dá força a esta solução governativa é o pragmatismo com que todos assumiram a necessidade de responder com resultados àquilo que era reclamado pelos cidadãos. Portanto, os quatro partidos têm identidades bem firmadas e distintas, que ninguém tem preocupação de esbater. Pelo contrário, todos as afirmamos com total naturalidade. Mas tivemos todos o pragmatismo de compreender que, identidades aparte, há coisas que podemos fazer em comum. É por isso, aliás, que conseguimos ter algo, que não posso deixar de sublinhar quando estamos a fazer quase um ano de Governo: é que, com o Governo que teve o apoio parlamentar mais à esquerda da nossa democracia, que teve uma política mais determinada de virar a página da austeridade, vamos ter os melhores resultados em matéria de consolidação das finanças públicas. O que só demonstra este equilíbrio e que cumprirmos o compromisso que tínhamos assumido com os portugueses, com a União Europeia.

Não há nenhuma razão para qualquer tipo de remodelação

O primeiro-ministro afasta qualquer hipótese de remodelação. Sobre o caso GALP considera que os três secretários de Estado que viajaram a convite “têm estado a fazer um trabalho excelente”, pelo que “seria uma grande perda para o país” afastá-los.

Por vezes, o Governo dá uma imagem de descoordenação, noutros momentos a imagem que passa é de que o primeiro-ministro centraliza tudo. Não teme ter a imagem de que toca mais instrumentos do que pode — ou que não tem tanta capacidade política como supõe?
A primeira parte da sua pergunta desmente a segunda parte. Mas acho que o Governo tem dado boas provas de articulação e funcionamento, em que o primeiro-ministro tem tido a intervenção q.b. que tem que ter para o exercício das suas funções.

Já pensou em acelerar uma remodelação governamental? Nomeadamente depois deste Verão. Vai tomar a iniciativa ou esperar que alguma coisa o force?
Não há nenhuma razão para qualquer tipo de remodelação. Aceitei o pedido de demissão do dr. João Soares, nas circunstâncias em que ele entendeu que o devia fazer. Mas o Governo tem estado a funcionar bem. Tenho plena confiança em todos os membros do Governo.

Não sente no caso GALP nenhuma fragilidade que tenha acontecido?
Não. Acho que houve uma desconformidade entre a avaliação que fizeram e aquilo que era o sentimento geral do país. Perante as dúvidas, o Governo fez o que institucionalmente tinha a fazer, que foi definir regras para que não houvesse dúvidas. Cada um deles fez o que nas circunstâncias era ajustado fazer: pagar a viagem. São três pessoas que têm estado a fazer um trabalho excelente, seria uma grande perda para o país que não o pudessem continuar a fazer e acho que foi um episódio que passou e que não deixará marcas no futuro.

Não deixou uma imagem de que os erros não têm sanção?
Se houve erro foi devidamente reparado, porque todos eles pagaram o valor da viagem que tinham aceite. O Governo definiu um código de conduta para que ninguém mais tenha que ter dúvidas sobre quais os tipos de convite ou de ofertas que podem aceitar. Contribuiu até positivamente, este caso, para nos ajudar a densificar regras que, sendo muito genéricas, podem levar a interpretações divergentes.

Sigilo: “Não há aqui uma batalha ideológica”

O primeiro-ministro não abriu o jogo sobre como vai responder ao veto do Presidente da República à lei que introduzia a quebra do sigilo bancário em contas acima de 50 mil euros. Mas foi claro a assumir: “Não há aqui uma batalha ideológica.” Até porque, argumentou esta lei teve como origem transpor uma directiva comunitária e um acordo assinado entre o anterior Governo português e o Governo dos Estados Unidos. “Não creio que os EUA, mesmo na Administração Obama, ou a União Europeia no seu conjunto possam ser entendidos como bastiões, pontas de lança do radicalismo.”

Defendendo a sua proposta, António Costa argumenta : “Hoje temos que ter instrumentos de combate não só à fraude e evasão fiscal como instrumentos eficazes também de combate ao branqueamento de capitais.” O primeiro-ministro alega ainda que a decisão teve como objectivo atingir a “transparência das transacções financeiras a nível mundial”. E explica que o opção de torna a lei extensível a todas as contas acima de 50 mil euros se deveu à “compreensão de que não havia nenhuma razão para que a mesma regra não fosse aplicada também aos residentes”. E insiste em dizer que a lei respeitava as “regras da privacidade” e “todas as condições aprovadas pela Comissão de Protecção de Dados”.

Guterres é a “pessoa mais qualificada” para a ONU

A aposta do Governo na candidatura de António Guterres a secretário-geral da ONU é reafirmada pelo primeiro-ministro. “Nós desejamos para as Nações Unidas um secretário-geral que seja a pessoa mais qualificada para o poder exercer e é nesse sentido que apresentámos a candidatura do engenheiro António Guterres.”

Amanhã, o nome de Guterres volta a ser votado no Conselho de Segurança da ONU, numa importante votação, já que, pela primeira vez, se vai saber o sentido de voto dos cinco membros permanentes (China, EUA, França, Reino Unido e Rússia) – o Conselho de Segurança é constituído por quinze países. Ao PÚBLICO, António Costa frisa que “o pressuposto” da candidatura de Guterres “não é ele ser português, é ele ser a melhor pessoa para exercer as funções como secretário-geral das Nações Unidas”.

O primeiro-ministro sublinha a importância do consenso que Guterres tem obtido: “Vemos com muita satisfação que, depois de um longo processo de debate público e de audições públicas, em cinco votações consecutivas, sistematicamente António Guterres ficou destacado em primeiro lugar, sendo reconhecido como a pessoa em melhores condições para exercer as funções de secretário-geral das Nações Unidas.” E mostra-se convicto da eleição: “Estamos certos que, se for esse o critério de escolha, o engenheiro António Guterres dedicará os próximos anos da sua vida a prosseguir o trabalho a favor da Humanidade como secretário-geral das Nações Unidas.”

Assumindo que o Governo tem apostado a cem por cento nesta eleição, confessa que tem defendido esta candidatura “com todos os outros líderes europeus ou não europeus” com quem tem falado e que é “obviamente faz parte da chek- list das missões diplomáticas de qualquer agente político português a promoção dessa candidatura”.

“Não considero que a segurança e a liberdade sejam conceitos contraditórios”

Preocupado com a ameaça do terrorismo, António Costa defende que não confunde “o reforço da segurança com a violação da liberdade” e afirma: “Não considero que a segurança e a liberdade sejam conceitos contraditórios.” É por isso que sublinha que “fechar fronteiras não é reforçar a segurança, é violar uma regra fundamental da liberdade da União Europeia”. E contrapõe que o reforço da Segurança passa por opções como “melhorar a cooperação policial, judiciaria, entre os serviços de informações e as forças policiais”, bem como ter “uma guarda costeira e de fronteiras efectiva, reforçar a capacidade de vigiar as nossas fronteiras”.

Falando sobre outra questão central na Europa, António Costa frisa o reconhecimento do “estatuto de refugiado é um dever que a Europa tem na sociedade internacional”. E lembra que “a Europa é, aliás, o berço da sociedade mundial organizada de acordo com o princípio da lei internacional e quem carece de protecção internacional”, pelo que “a Europa não pode fechar as portas” aos refugiados. Pelo contrário, tem de as abrir “de um modo solidário”. No que diz respeito a Portugal, explica que tem insistido na solidariedade portuguesa, mas que esta não tem sido disponibilizada em abstracto. “Aumentamos a oferta tendo avaliado previamente sectores onde temos não só capacidade como até necessidade de atrair recursos humanos.”

Quando o Parlamento Europeu debate a eventualidade de aplicação de cortes de fundos estruturais a Portugal, o primeiro-ministro sustenta que esta medida não faz sentido. “Serei talvez das pessoas mais insuspeitas no país de fazer uma avaliação positiva sobre a acção do anterior Governo”, garante, para destacar o que para si é uma evidência: “Vir agora multar o país ou suspender a aplicação de fundos por concluir essa coisa absurda de que o Governo não teve uma acção efectiva na execução do programa da troika, é uma coisa que ninguém compreende.”

Adverte mesmo que tal decisão “seria altamente contraproducente num ano em que, mais décima menos décima, já há hoje um consenso com as instituições europeias de que Portugal ficará, pela primeira vez, com um défice abaixo dos 3%. Nós acrescentamos, ficará mesmo abaixo dos 2,7% que a Comissão ainda prevê e até abaixo dos 2,5% que a Comissão nos impôs como meta”. E conclui: “É uma coisa de elementar bom-senso.”