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As hossanas ao SNS

As hossanas ao SNS

O recente anúncio de 200 milhões de euros de novos investimentos na saúde planeado pelo mais importante grupo empresarial privado do sector vai levantar preocupações e ambiguidades, acompanhadas de muita controvérsia. O primarismo mais básico dirá que num país que há quarenta anos optou por um sistema de tipo SNS, na data em que é apresentado, este anúncio é uma provocação ideológica.

Opinião de:

As hossanas ao SNS

No outro extremo, não faltará quem veja nesta iniciativa uma libertária manifestação do mercado, ansiando por que um futuro governo venha confirmar a deslizante privatização do SNS, para atuar em convenção com o Estado, em regime semelhante ao da ADSE. No meio estarão os que hipocritamente se calam, considerando natural, logo consensual, o crescente desequilíbrio da nossa combinação público-privada, a favor do crescimento imparável do sector privado. Ele será financiado não só pelos quase 500 milhões de euros da ADSE, por várias dezenas de milhões pagas por outros legítimos subsistemas, bem como por toda a classe média que não esteja disposta a aceitar o crescente desconforto e os vagares do SNS.

Um sistema a duas matrizes e a duas velocidades: o privado para ricos e remediados e o SNS para pobres ou para casos mais complexos, independentemente da bolsa de cada um. A desnatação no seu melhor. E, todavia, poucos parecem dispostos a considerar que este fenómeno tem na sua origem a lenta e agora cada vez mais apressada destruição prática do SNS, acompanhada de retórica que o glorifica como uma das grandes conquistas do regime democrático. Vamos por partes.

Claro que o sector privado tem todo o direito de, por sua conta e risco se instalar onde vislumbre mercado, desde que cumpra as regras de planeamento, de qualidade e se submeta à regulação pública. Nada que custe muito: já não há planeamento hospitalar em Portugal e não é difícil ter qualidade vista como superior à do público, percecionada, quase nunca real. Tal como não lhe será difícil submeter-se à regulação, embora esta se revele crescentemente exigente. Também sabemos que o privado já não vai, como no passado, parasitar o público oferecendo ao pessoal deste em quatro horas de trabalho três vezes mais do que ele, em simultâneo, recebe por igual esforço no público. Agora tende a recrutar cada vez mais pessoal em horário completo, defendendo-o de conflitos de interesse. Também reconhecemos a crescente melhoria da qualidade e organização do privado e não desprezamos a flexibilidade e inovação da gestão que pratica, muito mais livre de peias, partidarismos e entraves que a do sector público. Mas todos sabemos, também, que o pessoal que vai selecionar no inesgotável manancial do SNS, lhe sai a custo zero de formação, é recrutado a meio de carreira, de entre líderes profissionais frustrados pela desorganização, faltas de meios e péssimo pagamento dos hospitais públicos.

Mas a nossa frustração aumenta quando, conhecendo todos a deterioração das condições remuneratórias do sector público agravadas nos últimos cinco anos, nada de positivo se anuncia para reverter esta situação. Bem pelo contrário tudo continua em plano inclinado para o desprestígio crescente do SNS. E quando vimos que no novo orçamento nada de novo surge na reforma da organização interna dos hospitais e que o pagamento das horas extraordinárias se mantém no nível degradante, em valor e cabimento, a que o governo anterior as havia votado, haverá razões de sobra para frustração. Que pode deflagrar em rancor. E certamente em perda para o SNS. Não me venham dizer que não há dinheiro. Pois não, sabemo-lo. Mas há prioridades. E se não pudermos colocar o SNS no topo da respetiva lista será melhor deixarmos de lhe cantar hossanas.