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Opinião: Áreas Protegidas: nem municipalização nem status quo

Opinião: Áreas Protegidas: nem municipalização nem status quo

Décadas de subfinanciamento do Orçamento de Estado e incapacidade de executar os fundos comunitários exigem repensar o modelo financeiro das áreas protegidas. Não é possível manter o status quo.

    1. A temática da descentralização, ocupa um espaço essencial no programa do actual governo como peça central da reforma do Estado. Ela deve ser feita, mas bem feita. O caso particular das áreas protegidas tem estado com o ministro do Ambiente que vai avançar, sem alteração legislativa, com uma experiência piloto na descentralização da gestão do parque natural do Tejo internacional. O tema é relevante pois tem havido uma grande incúria nacional na gestão destas áreas e também porque os partidos à esquerda do PS já sinalizaram que estão contra o que consideram ser a “municipalização” da gestão dados os conflitos de interesses existentes entre conservação da natureza e biodiversidade e promoção urbanística do território.

É sabido que Portugal é um dos países mais centralizados da União Europeia. A descentralização é importante, mas exige que se responda simultaneamente às questões; descentralizar o quê, porquê, para quê e como (financiar)? E exige que se compare com os previsíveis efeitos das alternativas à descentralização: que seriam a centralização num organismo do Estado (com ou sem desconcentração em entidades territorialmente mais pequenas) ou um modelo misto. No caso das áreas protegidas (parques e reservas naturais, etc.) o que está a ser considerado é a passagem de um modelo centralizado no ICNF (ex ICNB e ex ICN), para o que designo de modelo misto de dominância autárquica, pois a direção do parque seria presidida por um autarca (de um dos municípios abrangidos pelo parque), o diretor executivo nomeado pelo ICNF e um terceiro elemento da sociedade civil (por ex. de uma ONGA).

    1. O actual modelo de gestão dos parques e áreas protegidas é claramente insuficiente por falta e carências de formação de recursos humanos (ainda neste OE reforçaram-se os vigilantes da natureza, ainda insuficientes, e no verão passado ardeu grande parte do parque Peneda Gerês), por clara falta de recursos financeiros e humanos, e por inadequado modelo de governança e de gestão dos parques. O actual ICNF não só tem sofrido uma diminuição acentuada de recursos, como teve problemas de gestão já assinalado em auditoria do Tribunal de Contas. Já em 2008 era referido que “alegadamente, a carência de meios financeiros e humanos, o acréscimo de atribuições cometidas ao ICN[B] e os atrasos ocorridos nas candidaturas e reembolsos dos projectos co-financiados justificam o baixo grau de execução”. Décadas de subfinanciamento do Orçamento de Estado e incapacidade de executar os fundos comunitários exigem repensar o modelo financeiro das áreas protegidas. Não é possível manter o status quo.

Quanto ao modelo de gestão, se este já era centralizado no início do milénio, a partir de 2008 os parques, que tinham um diretor, passaram a ser agrupados, três ou quatro, sob o mesmo diretor de serviços do ICNB. Isso significou mais centralização e que a sua gestão tornou-se ainda mais efémera conforme atesta um excelente parecer do CNADS. Ainda no verão de 2016 pude confirmar in loco a ausência de informação e sinalética do parque natural da Arrábida quer no clube de campismo local quer no turismo de Vila Nogueira de Azeitão. “Pois é, há muitos turistas estrangeiros que pedem mas não temos… já pedimos que nos enviem.” O trânsito na zona das praias nos meses de verão é por vezes caótico (leia-se bloqueado) e em caso de emergência só pode mesmo acontecer uma tragédia. Esta a triste realidade de muitos dos nossos parques naturais não valorizados, dinamizados e preparados para o turismo da natureza.

    1. Uma questão essencial da descentralização é antes do mais saber o que deve ser centralizado e descentralizado. Temos museus nacionais e municipais; parques nacionais e municipais, património do Estado, regional ou municipal. Há património do Estado que deve permanecer na esfera do Estado por ter valor nacional e internacional (e.g. Mosteiro dos Jerónimos) e há património do Estado, que tem um valor sobretudo local e que teria mais sentido a propriedade municipal, quer a sua requalificação e utilização seja em gestão direta ou concessionada a privados, pois isso permitiria a racionalização da sua utilização de acordo com as preferências locais (e.g. a Ala Norte do Santuário do cabo Espichel agora no programa REVIVE). O mesmo com as áreas protegidas. Na legislação os parques ou as reservas naturais podem ser classificados como nacionais, regionais ou locais.

Numa carta a Madison, dizia Thomas Jefferson “A Terra pertence em usufruto aos vivos”. Adicionamos que os vivos que usufruem dos atuais parques naturais, não são apenas os residentes nos municípios onde se situam, mas todos os não residentes nacionais e estrangeiros. Este o primeiro equívoco que importa desfazer: as áreas protegidas têm um valor intrínseco e um valor para a comunidade humana que não se restringe aos residentes nos municípios abrangidos. Daqui resulta que o poder de autoridade máxima sobre elas deve residir no Estado e não ser descentralizado para municípios ou comunidades intermunicipais (que aliás não coincidem com nenhumas áreas protegidas). Não esqueçamos que vários parques foram estabelecidos para evitar a predação humana. Na Arrábida, foi constituída primeiro uma reserva natural (1971) e em 1976 foi criado o Parque Natural reconhecendo-se logo no artº 1 do diploma a insuficiência das medidas previstas aquando da criação da reserva. É claro que este poder de autoridade deve ser exercido para a preservação e valorização dos valores paisagísticos, botânicos, zoológicos, geológicos bem como para promover as atividades económicas, culturais e sociais compagináveis com esses valores.

  1. Se é certo que nestas quatro décadas muito foi feito, também é certo que o atual modelo financeiro e de gestão das áreas protegidas é inadequado e está esgotado. O atual ICNF não desempenha bem a sua função. Não tenho ainda ideias claras sobre o melhor modelo, mas deixo aqui a minha reflexão presente. A dificuldade reside em que, como refere o CNADS, temos de olhar para três dimensões integradas: i) modelos de governança, ii) modelos de sustentabilidade socioeconómica e valorização do património natural e iii) modelos de financiamento. Na governança vejo claros benefícios em envolver os municípios e agentes locais e em caminhar para um modelo misto de governação (com participação de Estado, municípios e sociedade civil), mas com controlo do Estado. Adaptaria o modelo misto proposto pelo ministro do Ambiente colocando o representante do ICNF a presidir. Integraria também um representante da região de turismo respetiva, que traria vários benefícios: articulava dois ministérios (ambiente e economia/turismo), mobilizava recursos financeiros do turismo, resolvia parcialmente o problema das atuais regiões de turismo (desde 2012 coincidentes com as NUTS II, mas que no que toca a Norte, Centro, e Lisboa, não têm identidade própria), dava a maioria da decisão ao Estado (dois votos em quatro com voto de qualidade do presidente). Daria maior poder executivo ao representante dos municípios para as candidaturas a fundos comunitários, na preparação, na execução e nos benefícios que daí advêm. Há também que reavaliar as atribuições e competências que têm de estar centralizadas e outras que podem e devem ser mistas ou descentralizadas. Logo na criação do parque da Arrábida, por exemplo, a vigilância e policiamento do parque estava atribuída a guardas florestais, funcionários do Serviço nacional de parques, funcionários das câmaras municipais e vigilantes da natureza do corpos de vigilantes do parque. O IMI é receita municipal pelo que a intervenção municipal claramente se justifica. Obviamente que não pode haver custos acrescidos para os municípios sem os correspondentes recursos. O mérito de Matos Fernandes foi ter colocado na agenda a necessidade de repensarmos as nossas áreas protegidas. Não discordo do método escolhido — uma experiência piloto sem alterações legislativas e a avaliar – embora discorde do modelo e também tema o limbo em que as restantes áreas protegidas se irão manter enquanto a experiência se realiza. O debate sobre a descentralização, o modelo de governação, de atribuições e competências e de financiamento das áreas protegidas deve prosseguir, tendo como pano de fundo a boa reflexão da CNADS, porque a situação atual não é nem recomendável nem sustentável.

(in Observador)

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